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Democracia patrulhada

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O historiador mineiro João Camillo de Oliveira Torres publicou em 1964 um importante livro para a compreensão do Império Brasileiro no segundo reinado, chamado “A Democracia Coroada”. Torres descreve que o Poder Moderador, exercido por D. Pedro II, mantinha de forma institucional o equilíbrio entre as forças políticas exercidas pelos dois partidos antagônicos, o Conservador e o Liberal. Era, como se sabe, uma democracia das elites, sob regime monárquico, sem a participação popular e com a manutenção da escravidão.

Com o advento da República, a política foi dominada pelos grandes proprietários de terras e de bens patrimoniais, os chamados “coronéis” que monopolizaram a máquina do estado durante todo o período até a Revolução de 1930. Foi a época do voto de cabresto e dos currais eleitorais, onde esses coronéis controlavam os votos dos seus empregados, agregados e apadrinhados. Assim, a manipulação dos votos permitia sempre que os candidatos da situação fossem vitoriosos. Caso um candidato da oposição ganhasse uma eleição, ainda existia o artifício da manipulação da diplomação que permitia a simples cassação dos eleitos. Aliás, foram esses vícios eleitorais uns dos motivos da Revolução de 30, encabeçada por Getúlio Vargas.

Depois, para a desilusão dos que acreditaram numa conquista democrática, veio a ditadura do Estado Novo com toda sorte de abusos e violências. Mas, Getúlio com muita sagacidade e competência política concedeu grandes benefícios à classe trabalhadora que perduraram por longos anos. A recente e malfadada política neoliberal anulou algumas dessas conquistas, em especial com as medidas paternalistas dos dois últimos governos que nada colaboraram para o fortalecimento dos trabalhadores.  Essa é a realidade, a despeito dos que acham que o atual governo é de esquerda e governa em nome dos desfavorecidos da história brasileira. Com a queda da ditadura getulista, teve início a chamada democracia populista e mais tarde, para a desgraça do país, foi interrompida pelos vinte anos de ditadura militar.

Essa curta fase democrática, apesar de suas mazelas, permitiu o avanço das manifestações populares, das liberdades civis, do fortalecimento de alguns importantes sindicatos e do aparecimento de grandes políticos como

Ademar de Barros, Jânio Quadros (que durante a ditadura foi confinado em Corumbá), Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda, para citar os principais, e até mesmo resgatando a figura populista do  ex-ditador Getúlio Vargas que retornou ao poder pelas urnas e nos braços do povão.

Com a ditadura militar as liberdades democráticas foram para o brejo, definitivamente. Deixo de refletir sobre este período, que ainda me causa muita tristeza e amargura.

Lembro-me das eleições municipais de 1982, nos estertores do regime ditatorial, época em que fui candidato a vereador em Corumbá e na televisão os candidatos apareciam sem poder dizer uma palavra por causa da mordaça da Lei Falcão. Como a TV Cidade Branca não tinha na ocasião nenhum recurso de tecnologia moderna como conhecemos hoje em dia, os candidatos passavam pelo suplício de permanecerem imóveis, sem piscar, como imagens mudas e congeladas. Ficava uma coisa ridícula e surreal. Anos depois, felizmente, o país viveu a abertura política e democrática, com uma emocionante atuação de movimentos populares contagiando todo o Brasil, apoiando a Emenda Dante de Oliveira e a Anistia.

Hoje, penso melancolicamente nas pessoas que pagaram um alto preço por suas idéias e ideais, perseguidas, torturadas e até mortas em defesa da liberdade de pensamento e de opinião, de ir e vir e de escolher e votar livremente em seus candidatos. Creio que não se deve, e não se pode perder este bem precioso, conquistado pelo povo brasileiro. Neste posicionamento, assisto com preocupação as campanhas eleitorais nos últimos tempos e as posições tomadas por membros dos tribunais eleitorais em nome de uma suposta ética politicamente correta. Na verdade, vigora a hipocrisia nessa ânsia de estabelecer o que é certo e o que é errado no “livre” debate político, haja vista as regras dos programas que apresentam candidatos na TV.

Sempre entendi que as eleições representam uma grande festa popular da democracia, envolvendo e motivando os que amam a liberdade e o direito de participar dos destinos políticos de seu país. Parece, entretanto, que tudo é proibido nas manifestações “espontâneas” das pessoas. Então, como o povo vai participar desta festa? Assim, os debates viraram um espetáculo enfadonho, onde os candidatos são impedidos de expor suas idéias e projetos, engessados por regras draconianas e tempo restrito para suas falas.

Creio que no período eleitoral os protagonistas são os candidatos a algum cargo, mas isso vem sendo embaçado pelos que regulamentam a legislação eleitoral. Chegou-se ao desplante de certa autoridade judicial recomendar que em reuniões políticas não se  oferecesse água aos presentes, por que poderia ser entendido como uma “compra” de voto. A legislação eleitoral proíbe o oferecimento de “alimentos e bebidas” aos eleitores. Pode? Isso de fato impede que votos sejam comprados e eleições, fraudadas? 

Certa feita, numa das recentes campanhas eleitorais, em uma cidadezinha do sertão, um juiz proibiu faixas, bandeiraços, distribuição de santinhos, adesivos e folhetos em vias com semáforos. E não ficou só nisso. Foi proibida também a distribuição de material de campanha em prédios, bares, igrejas, lojas comerciais e restaurantes. E eu pergunto: como fazer uma campanha desse jeito?  É a volta da censura? Como divulgar os candidatos, suas idéias, suas biografias e suas propostas? Aí, não adianta dizer que o eleitor não sabe votar.

Que democracia é esta, cheia de vieses e de mordaças em tempos de liberdade globalizada e amplo acesso às informações. Tais medidas e “zelo” em excesso acabam por radicalizar a troca de opiniões e de idéias e, dessa forma, assistimos impotentes à deterioração dos debates que descambam nas redes sociais para o ódio e ofensas pessoais.

Da democracia coroada do século XIX evoluímos (?) para uma democracia monitorada, nada acrescentando ao processo de fortalecimento da cidadania no Brasil. 

Valmir Batista Corrêa

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Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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