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O tropeço da religiosidade ociosa e o fanatismo sádico

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'É na desumanização do homem que se apoia o genocídio, tanto no passado quanto nos dias de hoje'. (Nara Rúbia Ribeiro)

Não à toa que vivemos dias de ultraje da civilização, roupagens rotas, seres moribundos, olhares tantos vestidos de marginalidade e exclusão, e assim seguimos por dentre ruas e vielas, becos e favelas, percebendo o ócio de tantas vidas, largadas a um destino vil, atadas a uma realidade de profundas mazelas a envolver o destino humano, por onde passa o nosso olhar indiferente.

A característica visível destes tempos reside na indiferença pelo semelhante, no fechamento em nosso próprio ego, dos nossos desejos e necessidades.

A indiferença tem um poder devastador. Ela é a companheira doentia do dominador e opressor, também dos que preferem as desigualdades, a violência, o ódio e a morte.

A indiferença se manifesta tão intensamente no dia a dia das pessoas, que provoca atritos, reações negativas de todo o tipo, além de ressentimentos que o tempo custa a apagar. 

A indiferença mata lentamente, anula qualquer sentimento, e assim criamos distâncias quando estamos tão próximos. As pessoas se habituam tanto àquelas que convivem com elas que elas passam a não notá-las mais, a não dar mais importância. 

O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. 

Os indiferentes, de uma forma ou de outra, ferem, rejeitam, excluem, matam. Se tivesse uma cor, ela seria cor da água, cor do ar, cor de nada.

A indiferença nasce do desamor que alimentamos pelo ser humano, pela despreocupação ou pela incapacidade de entender as dores e dificuldades da alma alheia. Enquanto o amor tem a capacidade de nos aquecer a alma, a indiferença a torna fria, incapaz de sensibilizar-se ou entender as agruras do próximo.

“A indiferença é o sono da alma” - Charles Favart -

Mas, por que somos assim? Por que a nossa (pseudo) humanidade nos remete a estados outros, de inerte postura, diante da vida, das pessoas, por que somos o avesso daqueles com os quais sequer conhecemos iguais na condição de miséria, quando, nos propomos a ser indiferentes diante deles?

Será que as muitas religiões que constituem o planeta, seriam suficientes para salvar um único homem? 

Entendo que, elas podem ter princípios, forma, 'corpo' e doutrina bem alicerçada, à semelhança das leis que desafiam a nossa consciência, diante das pesadas e evidentes contradições, que por elas passam, especialmente, quando pensamos acerca da realidade humana.

Mas, por que será que o conceito religioso, é tão vazio em si, especialmente quanto ao “modus operandis” e a forma direta de cuidar do outro, como também de si?

O que nos leva a estados de inquietude e ao mesmo tempo de conformação, diante dos quadros que assolam o mundo, movidos por realidades cruas, que aviltam a existência e que a torna um lugar incomum a tantos que se veem alijados dos mínimos direitos e dignidades tão visíveis nos tratados e leis de todo o mundo?

Por que será que em nome da religião, se mata se condena, se julga se exclui tanto? 

Qual o propósito de se ter uma religião para viver?

Em nossos dias, experimentamos um contexto onde as diferentes formas e expressões religiosas, tendem para um universo decomposto de entendimento e harmonia, vivemos uma religiosidade 'palatável' ao gosto do freguês, bastando para isso, escolher o prato principal que se quer provar. 

Somos uma geração perplexa, somos uma geração insegura, somos uma geração aflita - mas, como tudo tem seu lado bom, somos uma geração questionadora. Sofremos com a falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a desmoralização generalizada que contaminam velhos e jovens, é o que afirmou a escritora Lya Luft em seu artigo, 'Quem ama Cuida'.

O medo faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser o terror da violência doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas – mas o medo natural e saudável que nos torna prudentes (não acovardados), pois nem todo mundo é bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes são modelos de dignidade.

Millôr Fernandes certa vez afirmou: “Sinto a sensação cada vez mais inconfortável de ser feliz num mundo em que isso está completamente fora de moda.”

Infelizmente, o tropeço da religiosidade ociosa e o fanatismo sádico, erguem muralhas visíveis, em forma de exclusão, preconceito, alimentando o ódio exacerbado que dissemina o mal e que separa povos e gentes, num hiato forçoso, movido por ideologias eivadas de medo e legalismo.

Imagino que não podemos mensurar a dor que veste nossos olhos nús, envoltos em lágrimas, dissabores, tédio, melancolia, frustrações que se despem diante de nossa realidade vulnerável, frágil, que se move dentre tantos lugares de vazio, a começar de nós mesmos.

A escritora Eliane Brum em um artigo de rara beleza, intitulado 'Olhos de Insufilm' afirmou :

“Existe aquilo que não vemos, mas gostaríamos de ter visto. E existe aquilo que não vemos porque escolhemos não ver. Como quando fechamos o vidro do carro para impedir o contato com as pessoas que nos pedem alguma coisa do lado de fora. E colocamos insulfilm nos vidros, quanto mais escuro melhor, para que nem mesmo elas possam nos ver. É mais fácil quando aqueles que querem entrar não enxergam nosso rosto assustado, culpado ou com raiva. Nosso desamparo diante da dor do outro é oculto por camadas de insulfilm. E um pouco mais: a película que permite a nossa cegueira impede os que pertencem ao lado de fora de ver que não estamos vendo. Nos iludimos que estamos protegidos, mas a escolha de não ver – assim como a de não ser visto – vai nos brutalizando. E logo nem precisamos mais da película sintética na janela. Porque um insulfilm orgânico já cobre nossos olhos, faz parte de nós. Não ligamos mais. Os que querem entrar já não importam, porque nos iludimos que são tão diferentes de nós, que temos a sorte de estar dentro, que não faz mais diferença.” Todos os genocídios da história foram cometidos por poucos, mas só puderam ser consumados porque muitos fingiram não ver. E fingiram com tanta ênfase que acabaram por acreditar que não viam. Às vezes, contra todos os meus esforços, acontece comigo. Sucumbo à banalidade, me distraio e permito que o insulfilm me cubra os olhos. Iludo-me que estou vendo, mas não estou.

A história prova que o Homem pratica a discriminação e a intolerância numa constante, com alguns lapsos de tempo em que o interesse político se sobrepõe da alguma forma ao interesse religioso e permitem outras formas de manifestação da fé, coibindo por certo tempo os intolerantes.

Se o gérmen do fanatismo é individual, talvez presente de forma latente no homem, se ele pode ser despertado e cultivado através do convencimento, da incitação, da repetição e do incutir continuado da ideia de estar cumprindo uma “missão sagrada”, um “designo divino” que pode livrar o homem do inferno e levá-lo ao paraíso; por outro lado há no ser humano toda uma generosidade, uma capacidade de empatia e de compreensão, de amor e fraternidade que precisa ser trabalhada quotidianamente em prol do bem comum, do cumprimento da lei, da tolerância religiosa e da liberdade.

Percebe-se que vivemos num contexto onde as diferentes formas e expressões religiosas, tendem para um universo decomposto de entendimento e conflito. 

Isto prova o quão distantes estamos de um entendimento sobre ideologias e crenças, ou seja, temos uma religião palatável ao gosto do freguês, bastando somente escolher o “prato principal.”

Pio Barbosa

Professor, roteirista, poeta, escritor

                                  https://www.facebook.com/jornaldacidadeonline

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Pio Barbosa Neto

Articulista. Consultor legislativo da Assembleia Legislativa do Ceará

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