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“Arraia Miuda”, A classe sem classe

Existe por aqui uma enorme camada de população pobre, desorientada e engabelada pelo governo através dos chamados “programas sociais”.

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Na Revolução Francesa, no século XVIII, uma população pobre e marginalizada da sociedade, como trabalhadores braçais, desempregados, prostitutas, mendigos, facilmente manipulados por líderes políticos da época, eram conhecidos como os sans cullotes (na tradução literal, os sem calças). Era uma massa desorganizada que agia conforme interesses imediatos e vendia seu apoio a quem lhes oferecesse algumas migalhas. 

Teria sido dirigida aos sans cullotes a famosa fala (verdadeira?) de Maria Antonieta sugerindo que na falta de pão comessem brioches. Mas essa é outra história... por sinal, mal contada. Esses miseráveis, de fato, dirigiam sua fúria e seu ódio à nobreza privilegiada na sociedade francesa da época, derrubando a famosa Bastilha e atacando o palácio de Versalhes no início da Revolução de 1789.

No século XIX, Marx que se dedicou ao estudo do capital e da sociedade de classes, descreveu uma determinada camada da sociedade que não se enquadrava na categoria de classe social e a chamou de lúmpen proletariado. Eram pessoas pertencentes à massa da população marginalizada e pobre que viviam na órbita dos grandes centros urbanos e industriais. Não tinham qualificação profissional e viviam de pequenos e ocasionais serviços, incluindo atividades clandestinas ou aquelas que poucos desejavam desempenhar em sã consciência (faxineiros, limpadores de fossas e de chaminés, prostitutas, carregadores e outras).

Essa categoria, desprovida de quaisquer idéias e consciência, não tinha condições de participar e desempenhar um papel decisivo na luta de classes e no processo revolucionário de transformação da sociedade burguesa. Conforme Marx, a verdadeira revolução deveria ser conduzida pela classe operária. O lumpesinato, por sua vez, apenas servia, do ponto de vista político, às manobras das lideranças revolucionárias e de oportunistas em muitos casos, consistindo na massa disforme e furiosa sempre pronta a sair às ruas com objetivos (não muito claros) de obter benefícios próprios e imediatos.  Era a turba que tomava partido sem defender um projeto social ou uma ideologia própria e tanto fazia estar do lado dos trabalhadores, quanto dos patrões. As teorias de Marx, aceitas por uns e contestadas por outros, descrevem com lucidez essa camada marginal da sociedade, presente no nosso tempo.

Ainda no século XIX, no período regencial da monarquia brasileira, tornou-se comum encontrar em documentos oficiais a referência a esta população marginalizada e envolvida em manifestações nativistas, nominadas como grupos de desordeiros e desocupados, chamados de “arraia miúda”, os nossos sans cullotes. Para a manutenção da política conservadora imperial, a grande carga de repressão recaiu sobre essa camada de população. Na província de Mato Grosso, por exemplo, no movimento revolucionário de 1834, quando os nativistas tomaram o poder por três meses, os documentos oficiais foram recheados com essa expressão. Essa arraia miúda em Cuiabá era composta de soldados subalternos envolvidos em insubordinações diversas, e também de pequenos artesãos, empregados domésticos, desempregados, prostitutas, mendigos e miseráveis de modo em geral. Historicamente, foi sobre eles que se dirigiu a ação mais brutal do poder constituído. Sobre o tormentoso episódio escrevi o livro “História e Violência em Mato Grosso – 1817- 1840” e, mais recentemente participei da obra coletiva lançada neste ano em Cuiabá, “Rusga, uma rebelião no sertão”, editada pela UFMT.

Os tempos mudaram e esses episódios e personagens históricos relatados nos livros de história devem ser lidos e analisados para que se tenha uma clara compreensão da sociedade que temos em pleno século XXI. Afinal, ainda não aconteceu a grande e definitiva transformação da sociedade de classes, ou da sociedade do trabalho regida pelo capital, ainda dominante em nosso planeta, apesar de decadente.

Existe por aqui uma enorme camada de população pobre, desorientada e engabelada pelo governo através dos chamados “programas sociais”. Quase sempre desqualificada profissionalmente e excluída da maioria das políticas públicas fundamentais, agrega hoje pessoas que atuam no chamado mercado informal, os desempregados, moradores de rua e muitos outros excluídos,como os que fazem parte do triste espetáculo da “Cracolândia” em São Paulo. Entretanto, essa plebe ignara é muito assediada em épocas eleitorais, pelo (baixo) valor de seus votos. Candidatos e partidos da situação interessados em permanecer no poder inventam mil formas de “fidelizar” esse tipo de eleitor, com a compra de votos travestida de programas sociais, tais como os Bolsa Isso, Bolsa Aquilo e outros. 

Quando foi privatizada, em Mato Grosso do Sul, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, todas as preocupações se voltaram para a situação aflitiva dos ferroviários. Ninguém atentou para o grande volume de pessoas e de suas famílias, que ficaram “a ver navios”, digo “trilhos”, neste triste episódio. Dentre estes estavam os carregadores de malas, carroceiros e taxistas, vendedores de jornais e revistas, garçons dos bares da estação e dos carros restaurantes, vendedores de chipas e etc. Enfim, todos os que viviam e se sustentavam gravitando ao redor da ferrovia e das suas estações. O que aconteceu com eles?

Quando houve a transferência da tradicional e histórica feira livre para um dos pátios da ferrovia, não se levou em consideração a quantidade de pessoas que ficaram sem sustento, até então gravitando ao seu redor.  Carregadores, maleiros, jornaleiros, garçons, empregados das pequenas lojas, vendedores de salgados, copinhos de água e frutas, comerciantes informais de relógios e bugigangas importadas de ocasião, etc. Muitos destes não se enquadraram no ambiente da nova feira central e, desamparados, foram procurar outra freguesia.

Quando houve a transferência em Campo Grande da velha para a nova estação rodoviária, também foi sacrificado o grupo de gente que gravitava no seu entorno para sobreviver, incluindo as moças e rapazes “de vida nada fácil”. O comércio e o setor de serviços da vizinhança pereceram de morte e pouca gente conseguiu mudar de rumo ou de vida.

Todos esses casos decorreram de medidas administrativas e necessárias à modernização das cidades que, no entanto, excluíram uma população enorme, a arraia miúda local e desamparada. Imagina, então, o que está ocorrendo com essa gente com a crise atual que o país vive e os cortes brutais nos orçamentos de obras públicas e sociais.

 A arraia miúda só cresce com os novos desempregados que pagam o pato pela queda nos lucros e pelo abalo nas contas públicas, incluindo nesse prejuízo o descalabro da corrupção, agora amplamente revelado nos inquéritos e na imprensa. De uma sociedade burguesa e de classes estamos evoluindo (de fato,regredindo) para um grande grupo disforme de novos sans cullotes: os sem pão, sem teto, sem creche, sem escola, sem saúde, sem emprego, uma turba imensa, miserável, sem perspectivas de futuro e violenta sob diversas formas. E, por isso tudo, chamadas de “classes perigosas”. 

Vem encrenca grossa por ai.

Valmir Batista Corrêa

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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