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Os cadernos de Antônio Burgos

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Conheci o artista plástico espanhol Antônio Burgos Villa quando cheguei a Corumbá em 1971. Desconheço os caminhos percorridos por este amigo de Pablo Picasso para radicar-se na Cidade Branca. Chego a pensar que não suportou conviver com a ditadura franquista em sua amada Espanha e foi-se refugiar na região multicolorida pantaneira. Faleceu em 1983, com 83 anos, reconhecido por todos os corumbaenses.

Artista acadêmico, deixou obras marcantes na pintura, em esculturas de madeira e afrescos de gesso. Cito um belo exemplar em madeira: o Cristo crucificado que repousa em uma igreja de Corumbá. Lembro que sempre admirei os belos afrescos por ele produzidos nas paredes do antigo Cine Tupi. Infelizmente, por força da ignorância e da insensibilidade, esses afrescos permaneceram muito tempos desprotegidos e precisam ser preservados.

Entre as pinturas, destacam-se os seus belos florais. Para a minha satisfação tenho em minha sala uma tela a óleo de Burgos desta temática, que ganhei do meu amigo Gilberto Luiz Alves. É importante lembrar que além de produzir suas obras, Burgos manteve uma escolinha iniciando no mundo mágico da pintura muita gente boa, como por exemplo Joubert Pantaneiro e Marina Gatass.

Minhas lembranças sobre o velho Burgos reavivaram quando incorporei seus cadernos na minha biblioteca. Tudo aconteceu anos atrás. Após a sua morte e de seus parentes diretos, a sua casa cercada de árvores, flores e obras de artes foi vendida. Como sempre acontece, o novo dono do imóvel fez uma grande faxina, colocando no lixo aquilo que considerou imprestável. E assim foi feito. Um conhecido meu passou pelo local e, olhando aquelas quinquilharias, viu admirado três cadernos de capa dura, que eram simplesmente os registros da escola de pintura do artista Antônio Burgos. Fico a imaginar, pesaroso, quantas outras coisas interessantes esse novo proprietário descartou como lixo.

Os cadernos de Burgos eram registros importantes da história da cidade e da cultura corumbaense. Aliás, são documentos fundamentais para o pesquisador que deseja estudar a história cultural de Corumbá e de Mato Grosso do Sul. Os cadernos registraram as exposições de obras dos alunos de Burgos, inclusive no exterior, com o nome de cada um dos seus aprendizes expositores; há também longas listas de presenças; registros de comentários das pessoas amantes das artes plásticas; artigos de jornais sobre as exposições; fotografias dos artistas produzidos na escola e de autoridades nacionais e estrangeiras. Um desses cadernos tem como título “Livro de Regência”, que indica a orientação de Burgos aos seus alunos.

Felizmente, por obra do acaso, essas raras anotações estão hoje em meu poder, no meu arquivo de documentos sul-mato-grossenses, devidamente acomodados e valorizados. Reconheço a relevância desses registros para a pesquisa, e por isso tais documentos estarão sempre à disposição dos pesquisadores da cultura regional. Contudo, lamento, pelos acontecimentos aqui relatados, que tais relíquias não tenham ficado em Corumbá, em local público, seguro e disponível a todos os interessados.

Estes fatos devem ser um alerta para a gente corumbaense e para os que amam essa cidade que é, sem dúvida, um dos pilares da história sul-mato-grossense. Creio que ainda está em tempo de salvar o patrimônio documental da história corumbaense. Quem gosta da sua cidade não pode se omitir ante o descaso para com os registros históricos, que penso ainda existir na Prefeitura e na Câmara Municipal, ou outras repartições públicas. Isso sem falar das péssimas condições do Instituto Luiz de Albuquerque.

É preciso uma ação por parte dos intelectuais e artistas corumbaenses, manifestando uma posição definitiva e contundente em defesa da cultura e da história regional.

Valmir Batista Corrêa

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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