Escrever de carreirinha

Algumas escolas, mesmo permitindo o uso dos computadores, somente aceitam os trabalhos escolares se apresentados escritos de punho próprio.

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Alguns anos atrás foi exibida uma novela do escritor Dias Gomes, “O Bem Amado”, com um personagem fantástico, o cangaceiro Zeca Diabo interpretado pelo excepcional ator Lima Duarte. O seu maior sonho era aprender a ler e a escrever “de carreirinha”. Era esse o bordão característico desta figura, que achava bonito desenhar uma letra após outra em linha reta.

Às vezes, vejo o sonho do Zeca Diabo tornar-se realidade quando observo o esforço de pessoas idosas, analfabetas, que com muita coragem e persistência voltam aos bancos escolares em cursos de alfabetização de adultos. Com semblantes felizes, demonstram com orgulho sua nova condição de cidadania ao conseguir ler e escrever “de carreirinha”.

É terrível a escuridão que enfrenta o analfabeto nos tempos atuais. Mesmo algumas medidas de cunho social, como ter título de eleitor e poder votar não diminuem as dificuldades de enfrentamento do dia a dia, como pegar um ônibus, entender letreiros comerciais, fazer compras em supermercados, etc. Mesmo assim, as pesquisas têm demonstrado que, apesar do esforço da área educacional, o analfabetismo tem crescido inclusive nas camadas mais jovens no Brasil. Cresce também em todos os estados, o chamado “analfabeto funcional”, aquele que consegue apenas “desenhar” o nome, sem contudo entender o que lê e ter autonomia de pensamento e coerência no que escreve. Como é triste ver na televisão, jovens ou adultos sendo entrevistados com respostas pronunciadas de forma errada demonstrando total desconhecimento do mundo que os cerca. E o que é pior, respondem com risadas conformando-se com a própria ignorância. E são pessoas que passaram pela escola.

Sem querer ser um chato, ou dom Quixote contra a modernidade, ouso tratar de uma situação que deveria ser seriamente encarada pelos nossos educadores. Começo lembrando os velhos tempos em que a alfabetização começava com um bonito caderno de caligrafia, onde os alunos treinavam os contornos das letras bem redondinhas. Em fase posterior, os professores faziam os ditados para que os alunos entendessem as sílabas e reproduzissem as palavras corretamente. E ainda havia o exercício da cópia. Depois, as crianças exibiam orgulhosas aos seus pais suas tarefas apreendidas na escola, em cadernos limpos e encapados, o que era uma exigência e cobrado com rigor pela professorinha.

Agora, com o avanço da tecnologia, muita coisa mudou e um novo instrumento faz parte do cotidiano estudantil: o celular que está literalmente nas mãos de todo mundo. Faço primeiro uma reflexão sobre o uso indiscriminado dessa tecnologia portátil, sob a forma de tablets, notebooks e smartfones. Antes, havia a obrigatoriedade de decorar a tabuada, necessária para o exercício das quatro operações aritméticas. Aliás, ainda tão necessária para o desenvolvimento da vida cotidiana e, sobretudo para o desenvolvimento do raciocínio lógico, entre outras coisas. Lembro quando alguns colegas usavam alguns truques para facilitar as dificuldades de memorização, como o milenar instrumento japonês (a calculadora de outros tempos) chamado “ábaco”, imediatamente os mestres reagiam e proibiam.

Para o bom desenvolvimento da cidadania, que implica em educação e formação de valores e princípios desde pequeno, creio que seria importante delimitar o uso do celular e da internet, que induz no fundo a uma “preguiça” mental nos estudantes, criando facilidades impensáveis há poucos anos atrás e impedindo que executem exercícios relevantes para o desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e de raciocínio crítico.

Por outro lado, a disseminação dessa tecnologia tem colocado em cheque a língua portuguesa, levando os estudantes a desaprendê-la. O perigo é transformar o computador, que é um instrumento/meio auxiliar importantíssimo no processo ensino-aprendizagem, em um fim em si mesmo. Esses instrumentos mudam hábitos, facilitam a vida, mas criam novos procedimentos sem um suporte de conhecimento básico, de linguagem formal escrita e matemática, de formação de massa crítica, podendo desvirtuar a principal finalidade da educação que é formar o cidadão.

O pior de tudo é observar políticos usarem como panacéia da melhoria da qualidade de ensino grandes investimentos na compra de computadores para as escolas. Sem ser contraditório, entendo ser importante o acesso de jovens e adultos aos mais avançados meios de comunicação e interação global através das redes sociais. Eu mesmo, neste momento, estou utilizando um notebook para escrever este artigo e não vivo mais sem ele. Uso a internet para muitas finalidades, mas sempre é bom lembrar que computadores e máquinas em geral são ferramentas e não mudam nada. Como a história da humanidade demonstra, é o (bom) uso da ferramenta que é revolucionário e transformador.

Por isso, vejo com muito interesse uma reação positiva de algumas escolas da capital paulista, que passam a exigir de seus alunos que escrevam à mão para evitar que a utilização frequente do computador faça com os estudantes percam a caligrafia e a utilização correta do português. Algumas escolas, mesmo permitindo o uso dos computadores, somente aceitam os trabalhos escolares se apresentados escritos de punho próprio. Até porque muitas dessas “pesquisas” via internet são meras reproduções e as tarefas tornam-se todas iguais, impedindo a avaliação e o acompanhamento do desempenho escolar de cada aluno.

Esta forma de ver o uso de novas tecnologias e das redes sociais nas escolas é uma forma de rever conceitos importantes da educação moderna, da qualidade do ensino focado na formação de cidadãos. E, por fim, deve-se ter em mente que a tecnologia deve estar a serviço dos professores e dos alunos de forma criativa, estimulando a inovação e desenvolvendo massa crítica, para que no futuro haja uma sociedade mais justa, fraterna e sustentável.

Mas, do jeito que a coisa vai, nem escrever de carreirinha a próxima geração vai conseguir.

Valmir Batista Corrêa

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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