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Gato por lebre

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Numa época bem distante, quando existia um Brasil ingênuo, usava-se para explicar uma vigarice a expressão “fulano levou gato por lebre”. Explico melhor. O sujeito era enganado por um malandro que vendia um produto maquiado por preço baixo, como se fosse um autêntico produto de maior valor. E o otário, metido a sabido, amargava o prejuízo além de fazer papel de bobo. Ainda hoje vejo pessoas caindo no conto do bilhete premiado. Pode?

Cresci ouvindo estórias até engraçadas desses espertalhões. Isso, porém, não significava que a sociedade brasileira aceitava em seu cotidiano a contravenção e a bandidagem como algo banal. Entretanto, a história da humanidade, como a brasileira, sempre esteve permeada de vigarices, violência e derramamento de sangue.  Assim a história caminha.  

Quanto à História do Brasil e à índole do nosso povo, afirmar que não há violência e que o brasileiro é cordial é apenas uma grande bobagem. Entretanto, fico neste artigo somente no entendimento da malandragem popular. Viajando no tempo distante, encontrava-se a figura consagrada do malandro dos morros cariocas, vestindo uma camisa listada, calças e sapatos brancos e chapéu de palha na cabeça,  caminhando com um gingado de corpo. Vivia de pequenos e cotidianos golpes. Assim foram registrados esses personagens para a posteridade em caricaturas famosas e nas ingênuas chanchadas dos filmes da Atlântida. Foi uma época que não volta mais, a do malandro almofadinha do “Amigo da Onça”, que desde 1943 frequentava as páginas da revista O Cruzeiro nos traços finos do cartunista Péricles. 

Lembro-me também do famoso Gino Meneghetti, ladrão lendário da crônica policial por não usar de violência em seus roubos de jóias, caminhando pelos telhados e fugindo de cercos policiais. Na contramão desta história de malandragem, recordo ainda do “Bandido da Luz Vermelha”, que se destacou no mundo do crime em São Paulo. Atacava mansões de madrugada, utilizando uma lanterna de foco vermelho. Entretanto, era violento, geralmente abusando sexualmente de suas vítimas. Esse bandido teve a sua vida e trajetória eternizada pelo cineasta Rogério Sganzerla, protagonizado pelo ator Paulo Vilaça, já falecido.

Essas figuras do mundo do crime de antanho até parecem românticas perto do que assistimos hoje em dia. Não vou comentar aqui a onda atual de crimes e de violência que vem varrendo o Brasil e também, é bom que se diga, grande parte do nosso planeta. As proporções que a bandidagem assumiu por aqui são inigualáveis e nunca antes nesse país se roubou tanto, com tantos bandidos de colarinho branco e de políticos malandros.

É muito curiosa a malandragem que há por aqui, em Mato Grosso do Sul, ocorrendo de forma recorrente. Por mais incrível que pareça, a velha máxima “vender gato por lebre” adquiriu nova roupagem aqui no estado. Veiculou há pouco tempo atrás na imprensa a vigarice de um sujeito que “vendia galinha de granja como caipira”. Isso mesmo, era malandro colorindo penosas brancas com tintura de urucum para serem comercializadas, evidentemente, por preços mais altos como galinhas “orgânicas”. A polícia rodoviária autuou e prendeu vários carregamentos desses picaretas. Fiquei admirado com a criatividade dessa gente que pensa que é esperta e que o resto do povo é otário. Mas que teve muita gente comendo galinha branca pintada de vermelho, isso teve. E achando que levavam vantagem, comprando-as por preço mais em conta.

Para quem não sabe, urucum é uma pequena árvore nativa que produz um fruto cheio de espinhos por fora e carregados de sementes vermelhas. Essas bolinhas, que dão um tom avermelhado e sabor à culinária regional, podem ser utilizadas moídas ou maceradas em azeite. Dizem que é, também, um excelente remédio para combater o colesterol, após as suas sementinhas ficarem descansando em água.

Ainda, sobre esse produto natural, foi o mestre João, cozinheiro corumbaense de primeira, já falecido, que inventou um prato delicioso usando esse condimento, o “Pintado a Urucum”, hoje famoso em todo o país.

Ainda vejo e leio na grande imprensa alguns comentaristas que falam de um país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza e com um povo cordial. Usam a expressão cordial como sinônimo de bonzinho e ainda enaltecem o “jeitinho brasileiro”, como uma virtude do nosso posso. Nada disso. Quando o historiador Sergio Buarque de Holanda escreveu que o brasileiro é cordial, estava se referindo ao nosso caráter impulsivo, oposto à racionalidade, construído e moldado pela história que vivemos há 500 anos. A palavra tem sua raiz em cor, cordis que em latim significa coração, oposto à razão. E o “jeitinho” só revela nossa capacidade de burlar regras e leis.

Pobre de nós que achamos que somos espertos e nos tornamos vítimas de nós mesmos.

Valmir Batista Corrêa

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Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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