desktop_cabecalho

O rei chegou! viva o rei!

Ler na área do assinante

Dentre as brincadeiras de criança, dos idos de antigamente quando se brincava nas ruas com ‘bolitas’ e com figurinhas, muitas delas difíceis ou carimbadas, e disputadas com o ‘bafo’ (jogo que consistia em virar figurinhas com a mão espalmada), havia a pergunta: ‘qual é a cor do cavalo branco de Napoleão’? Para os espertinhos a resposta era fácil. Mas, na verdade, não era não. A resposta certa era preta, pois “branco” era o apelido do seu cavalo.

Folclore ou não, a referência infantil tornava presente uma das grandes figuras do fim do século XVIII e início do XIX na história europeia. Era o corso Napoleão Bonaparte que assumiu com mão forte o governo francês depois da Revolução de 1789, e com seus exércitos pôs a correr os representantes da nobreza absolutista, permitindo o avanço dos interesses políticos da burguesia europeia.

Bonaparte pressionava as velhas monarquias europeias antes de invadir seus territórios, para que rompessem com o absolutismo e repassassem o poder à burguesia local. Foi o que aconteceu com Portugal, que desde séculos anteriores era aliado e dependente político da Inglaterra (ferrenha adversária da política expansionista francesa), e, por isto, recebeu um ultimato de Napoleão para fechar seus portos aos ingleses ou seria retaliado com a invasão. O que Bonaparte desejava era estabelecer estrategicamente um bloqueio continental para impedir os ingleses de comercializar suas mercadorias e asfixiar seu crescimento industrial.

Pressionado pela França e impossibilitado de contrariar sua forte aliada, a Inglaterra, D. João, que na época governava Portugal como príncipe regente no lugar de sua mãe, a rainha Dona Maria I (chamada injustamente de louca), viu-se obrigado a tomar uma decisão que mudaria os destinos da metrópole e de sua colônia, o Brasil. Aliás, D. João que era avesso a grandes decisões, tomou tais atitudes em virtude da pressão dos ingleses serem superiores às de Napoleão. Na verdade, a Inglaterra estava de olho na colônia portuguesa para escapar do bloqueio aos seus navios mercantes.  Não foi à toa que a primeira medida após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, devidamente escoltada por embarcações inglesas, foi decretar a abertura dos portos às nações amigas (leia-se aos ingleses). Dessa maneira, as bases do antigo sistema de monopólio de Portugal foram para o brejo.

Pois bem. Começou, então, uma corrida para o embarque nos navios aportados em Lisboa, já que D. João vacilou até o último momento para definir a sua estratégia de fuga (ops.!), diga-se, de transferência. Foi um desespero e uma total debandada. Bagagens, pratarias, até mobiliário e obras de arte, documentos e tudo o mais foi colocado de qualquer jeito nos navios, que estavam já entulhados de nobres, funcionários, apaniguados, além é claro, da família real. Muitos, deixados para trás, pulavam desesperados no mar e morreram afogados. O porto lisboeta era a imagem refletida do caos, em meio a baús abandonados e gente se lastimando da má sorte. Segundo a crônica da época, diante de todo aquele tumulto, a rainha, que parecia muito lúcida gritava, “não corram, pois pode parecer que estamos a fugir”.

Quando os navios zarparam já se ouvia o barulho dos canhões do comandante francês Junot, nas vizinhanças de Lisboa. Enquanto isso, muitos portugueses se organizaram para oferecer uma resistência. Entre eles, o cientista e professor José Bonifácio, mais tarde conhecido como o patriarca da independência do Brasil.

Apesar de planejar o desembarque no Rio de Janeiro, parte da comitiva real desgarrou-se da frota e aportou antes em Salvador. Somente em março de 1808, chegaram então ao Rio de Janeiro e, por isso, existiu toda uma festa neste mês pela comemoração dos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Com certeza, a viagem não foi uma festa. Pelo contrário, foi de dificuldades e atribulações.

Quando as mulheres embarcadas desceram em terra firme, usavam panos enrolados à cabeça. Isso bastou para que as mulheres da colônia, ávidas em copiar a moda europeia e, em especial, da nobreza portuguesa, passaram também a usar os panos como turbantes à cabeça. A bizarrice dessa situação decorreu da precária higiene durante a viagem nos navios, que provocou um surto epidêmico de simplórios piolhos nas cabeças reais. Em vista disso, D. Maria I e as demais mulheres da realeza cobriram as suas cabeças na intenção de protegerem-se.

Ao chegarem ao Rio, foi preciso acomodar os novos e nobres moradores da colônia. Aí, deu no que deu. As melhores casas cariocas foram requisitadas compulsoriamente para agasalhar os privilegiados e novos ‘sem-teto’. No início, os bajuladores de plantão (e de sempre) cederam honrados suas próprias moradias à nobreza portuguesa. Depois, caindo na real, chegaram à dolorosa conclusão que estavam, isso sim, passando por otários.

Ao tomar uma residência, D. João mandava colocar bem visível no imóvel as letras PR (Príncipe Real), como se fosse um privilégio (ilusório, é claro) aos proprietários. Para os espoliados e ressentidos, as letras significavam “Ponha-se na Rua” ou “Prédio Roubado”. Esta história do governo ser sócio dos contribuintes, como se viu, não é de hoje. Que o diga o dono da Quinta da Boa Vista, que se tornou palácio real e hoje é um dos principais museus do país. O dono da quinta foi ‘pr’os quintos...’

A família real trouxe consigo também os costumes europeus para o desfrute da fascinada colônia. Todos queriam aproximar-se dos nobres e testemunhar seus hábitos e requintes europeus. Assim, nos mais distantes pontos da colônia foi despertada a curiosidade dos súbitos, levando os mais abonados a visitar a nova sede da monarquia portuguesa, instalada no Rio de Janeiro. As crônicas dos costumes de Cuiabá, por exemplo, relatavam a frequência de viagens de cuiabanos ao Rio, para ver a nobreza, sentir-se perto dela e copiar na capitania, deslumbrados, as vestimentas e ‘trejeitos’ da realeza lusitana.

Tantos despautérios e idiossincrasias provocavam na ralé miúda reações através do deboche e das piadas. E essa é uma das heranças da família real no Brasil do século XIX que até hoje caracteriza a capacidade do brasileiro de rir e brincar com suas próprias mazelas, até virar brincadeira de crianças.

Valmir Batista Corrêa

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

Ler comentários e comentar