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Decisão do STF que obriga Aécio não sair de casa à noite é o mesmo que "enxugar gelo"

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No década final dos anos 90 e ao longo da primeira década de 2000, quase diariamente, o jornalista Hélio Fernandes telefonava para meu escritório na parte da manhã, por volta da 9/10 horas. E a saudação de Hélio era sempre a mesma. Mesmíssima. Não variava: "Dr. Jorge Béja, tudo na mais perfeita confusão?". Era assim que começava a conversa, que nunca durava menos de 30 minutos. E eu aprendia muito. Ouvia e pouco falava. E quando falava era para perguntar.  Esse tempo passou. Menos, a confusão, que piorou. Hoje, nem sei como Hélio Fernandes me saudaria. Talvez perguntando "tudo na mais perfeita desordem?". Ou "tudo na mais perfeita corrupção?".

A confusão persiste. As mentiras, embromações, pilantragens, patifarias, incompetências, roubalheiras e tantas coisas horrorosas, mas é que pioraram. Até o Supremo Tribunal Federal tem sua seriedade e notabilidade jurídica comprometidas.

Essa decisão de proibir Aécio Neves de sair de casa durante à noite é estranha. Mais do que isso, é inócua. Vamos explicar o motivo. Em 2011, o STF passou pelo vexame que pode ser repetido agora.

Severino de Souza Silva, então suplente de deputado (PSB-PE), impetrou Mandado de Segurança e o ministro Marco Aurélio concedeu liminar para obrigar que a Câmara dos Deputados lhe desse posse, imediatamente, na vaga que se abriu por causa do afastamento do deputado Danilo Cabral (PSB-PE). Mas Marco Maia (PT-RS), então presidente da Câmara, recusou cumprir a decisão. Por causa disso, o ministro Marco Aurélio pediu providências ao presidente do STF, que naquela época era o ministro Cezar Peluso e ao Procurador-Geral da República. Bobagem. O máximo que Peluso poderia fazer era dialogar, institucionalmente, com Marco Maia. E o Procurador-Geral da República abrir inquérito também contra Marco Maia. E se a desobediência ficasse comprovada, propor o PGR ação penal (oferecimento de denúncia) no STF contra o então presidente da Câmara. Mesmo assim, a denúncia, se recebida fosse pelo STF, poderia ter seu curso sustado, pela maioria dos votos dos deputados, conforme previsto no artigo 53, parágrafo 3º, da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 35, de 20.12.2001. Preso é que Marco Maia jamais seria.

Isto porque, tanto o crime de desobediência quanto o de prevaricação, artigos 330 e 319, respectivamente, do Código Penal, são infrações penais ditas de menor potencial ofensivo e as penas são de detenção. Afiançáveis, portanto.

E Marco Maia, como parlamentar, caso sua omissão fosse típica daqueles dois crimes, só poderia ser preso em flagrante e por crime que não fosse afiançável (inafiançável), como disposto no artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição Federal:

"Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão".

Como se vê, o STF impôs medida cautelar ao senador Aécio Neves inócua. Caso o senador saia de casa à noite, em desafio à ordem expedida pela Suprema Corte. Registre-se que o STF não cassou o mandato do referido senador. Apenas o suspendeu do exercício do mandato. Aécio continua senador e sob a proteção do artigo 53, parágrafo 2º, da CF. E suspender não é cassar. É certo que não ficará bem para a boa reputação de Aécio descumprir a decisão judicial. Mas Aécio pouco está se importando com a sua reputação, pois contra ele existe denúncia no STF por crime muito pior (corrupção) e mais nove inquéritos em curso.

Mas deixemos Aécio de lado. Não o considero flor que se cheire, como se dizia no passado. É a inocuidade da medida imposta pelo STF que leva o mundo jurídico brasileiro a meditar e concluir que hoje em dia "tudo está na mais completa desordem", não é mesmo Hélio Fernandes?, jornalista que sempre foi defensor da Suprema Corte e conhecedor de sua história tanto quanto Leda Boechat, autora da obra de 3 volumes intitulada 'História do Supremo Tribunal Federal". O STF expediu ordem estapafúrdia. Porque se descumprida for, nada acontece. Rigorosamente nada. E interdito judicial-criminal proibitório que possibilita o seu descumprimento sem punição alguma, é o mesmo que fazer chover no molhado. Ou enxugar gelo. Vamos aguardar os acontecimentos.  

Foto de Jorge Béja

Jorge Béja

Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

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