Sintomas de normalidade

16/07/2018 às 11:28 Ler na área do assinante

Acordamos já agitados pelo despertador, mesmo sendo musical. O tubo da pasta dental indica 90 g. Com sorte, tem 85 g. O saco de 1 kg de açúcar talvez atinja 975 g. O rolo de papel higiênico que deveria ter 35 m. pode ter apenas 32 m e nos deixar em situação delicada. O entregador do jornal ainda não chegou na hora pela 8ª vez no mesmo mês.

Consideramos isto normal.

A esposa foi para a fila municipal às 3 horas da manhã para tentar uma vaga na 1ª. série para o caçula da família. O filho de 11 anos pegou o ônibus que o leva à escola a mais de 25 km de sua casa. O filho maior não foi para o colégio, pois seus professores combinaram “enforcar” a 6ª feira após o feriado da 5ª feira. A sobrinha passa 6 horas seguidas na frente do game contendo inocente joguinho violento onde a distribuição de pancadas e tiros atingem a mente da criança em formação, milhares de vezes ao dia.

Consideramos isto normal.

A sogra voltou da padaria com o pó de café e torceu o pé por ter pisado numa grade de bueiro, pois a calçada em frente ao prédio está ocupada por um automóvel “off road” da Prefeitura. A rua está engarrafada, pois vários caminhões descarregam mercadorias fora do horário permitido, enquanto o guarda está fazendo um lanche gratuito nos fundos da padaria. Um motorista de ônibus urina ao pé da árvore em frente à farmácia. Na pracinha, mendigos fazem higiene geral no chafariz ao lado de cães vadios e pulgas sonolentas.

Consideramos isto normal.

No banco da esquina, dos cinco caixas eletrônicos, apenas dois funcionam. Saques somente em notas de R$ 50,00. O ar condicionado está com defeito há três dias. Quase quarenta idosos aguardam resmungando sobre a reposição do benefício de apenas 2%, enquanto o tal banco lucrou 105% no mesmo período (mesmo devendo impostos). O pequeno empresário tem de preencher dezenas de formulários para obter um empréstimo para levantar sua firma, enquanto grandes estelionatários (patrocinadores de eleições) dão golpes nos cofres públicos sem serem incomodados pela burocracia e fiscalização.

Consideramos isto normal.

O IPVA do velho carro aumentou mais de 12%, enquanto seu preço de mercado caiu 6% pelo menos. O IPTU aumentou quase na mesma proporção. As ruas continuam esburacadas, com bueiros entupidos, postes de iluminação sem lâmpadas há mais de três meses e lixo acumulado nas esquinas. Trabalhamos quatro meses por ano para pagar as tributações elevadas que não são aplicadas nas áreas destinadas por lei.

Consideramos isto normal.

A força policial patrulha a cidade em veículos sem manutenção, portando revólveres calibre 38 para enfrentar os fuzis AK-47 dos traficantes. Além dos impostos, temos de pagar uma taxa por fora para que “milícias” mantenham o quarteirão em paz. Os hospitais não possuem estoques de curativos básicos. Temos de levá-los para nossos parentes internados. Médicos ganham menos que motoristas de ônibus. Escolas estão sem quadros, giz e cadeiras. Professores ganham menos que trocadores de ônibus. Jornais estrangeiros noticiam uma morte brutal por semestre na última página do tablóide. Nós exibimos chacinas de 10 ou 12 pessoas nas manchetes principais diariamente.

Consideramos isto normal.

Menores de 18 anos podem votar, tirar carteira de motorista, gerar filhos e matar pessoas de bem em assaltos diversos. Mas não podem ser penalizados mesmo após o 5º assassinato, pois são “di menor”. Ficam impunes a exemplo dos legisladores que multiplicam seus patrimônios por 100 em apenas quatro anos de “trabalho”(?) estafante. E ainda são reeleitos mesmo com quatro ou cinco processos de corrupção em seus currículos.

Consideramos isto normal.

Elementos que receberam nossa procuração através do voto para gerenciar os problemas sociais de nossos municípios e estados, recebem altos salários, mordomias e trabalham (?) menos de 100 horas por mês. Participam de conchavos para desviar valores dos cofres públicos e são rotulados de “honestos” quando se apropriam de “apenas” 20% das quantias constantes de “licitações” suspeitas. Nenhum deles é preso, não perdem o mandato nem devolvem o montante desviado.

Consideramos isto normal.

Enquanto os “fichas-sujas” são reconduzidos aos cargos depois de quase 30 anos de mamatas e novos analfabetos são colocados no Legislativo (imaginem os tipos de projetos que virão), o povo apenas se reúne para shows nas praias, ensaios de escolas de samba e finais de campeonatos de futebol. Jamais se juntam para reclamar da escola despedaçada, hospital contaminado, ruas mal conservadas e segurança inexistente. Idolatram artistas de novelas e cantores (que nem sabem murmurar nosso Hino Nacional) e não sabem o primeiro nome de nossos heróis centenários.

Consideramos isto normal.

O povo não tem alimentação, educação, saúde, segurança nem transporte. Mas está pronto (?) para patrocinar uma custosa olimpíada internacional que suprimiu bilhões de Reais de nossos “compatriotários”. Consideramos isto SENSACIONAL. Fora o “legado” nacional.

Quem relata parte do caos social ao invés de enaltecer o Carnaval pode ser acusado de estar sujeito a um abalo emocional. Menos mal, pois de acordo com sua visão global, pode ser até considerado um ANORMAL.

Em estado terminal.

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Nossa sociedade é um colosso! Já passamos do fundo do poço.

Quem protesta não se contenta com o que resta.

Haroldo Barboza

Matemático. Profissional de TI, autor do livro Brinque e Cresça Feliz.

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