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Da NOB à Transamericana

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Desde as peripécias sofridas com a Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai) o governo brasileiro discutia a hipótese, então remota, de se construir uma ferrovia ligando a capital imperial às fronteiras com o Paraguai e a Bolívia. Era grande a influência da política desenvolvimentista norte-americana e europeia. Uma verdadeira utopia intelectual para os padrões brasileiros da época.

Várias ideias de traçado foram aventadas para um possível plano que atraísse investidores internacionais, considerando-se as dificuldades geográficas da região. Pensou-se, em 1871, na possibilidade de ramais alternativos entre Curitiba e Miranda ou entre Uberaba e Coxim, para concessão ao Barão de Mauá (grande empresário da época). Outro traçado poderia ser Rio de Janeiro-Cuiabá e de lá para a Bolívia.

Em 1890, já na República, foi feita a “concessão do privilégio de zona” ao Banco União de São Paulo, que não deu andamento aos estudos iniciais. A concessão foi transferida para a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (CEFNOB) – que ficaria conhecida por NOB, criada em 1904, a qual desviou o trajeto para Rio de Janeiro/Minas Gerais/Mato Grosso, contrariando os interesses das empresas Companhia Paulista e E.F. Sorocabana.

As ferrovias paulistas receberam o apoio do poderoso Clube de Engenharia do Rio de Janeiro que elaborou um “parecer técnico” sugerindo que a nova ferrovia deveria partir da então província de São Paulo, sem especificar o ponto inicial. As obras iniciaram em Bauru (em julho de 1905) com destino à Cuiabá, chegando a Lauro Müller (trecho de 92 km) em setembro do ano seguinte. Em 1907 o traçado foi modificado de Cuiabá para Corumbá e, no ano seguinte, a concessão governamental foi dividida em duas partes. A primeira concessão, entregue à NOB, compreendia o trecho de Bauru a Itapura (próximo à foz do Rio Tietê) e recebeu o nome de Ferrovia Bauru-Itapura; e a segunda concessão ficou sob domínio da União (mas arrendada à NOB por sessenta anos) era a Ferrovia Itapura-Corumbá.

Os trilhos chegaram à Araçatuba em 1908, quando então iniciou-se a construção da ferrovia Itapura-Corumbá. Duas turmas trabalharam simultaneamente nas duas extremidades (Itapura e Porto Esperança). Os trilhos chegaram à Itapura no início de 1910, e às margens do rio Paraguai em 1914, quando do encontro das duas turmas de trabalho na estação Ligação.

A União, em 1915, rescindiu o contrato de empreitada e arrendamento que tinha com a NOB para construção e operacionalização da Ferrovia Itapura-Corumbá e, na mesma data, encampou a Ferrovia Bauru-Itapura, de propriedade da NOB. Houve, de fato, uma fusão dos dois trechos que adotou o nome de Estrada de Ferro Noroeste do Brasil porque o grupo privado considerou o empreendimento pouco rentável.

Em 1917 a empresa foi estatizada, sob o comando integral da União devido à importância estratégica para manutenção da integridade territorial.

As maiores dificuldades encontradas, sem dúvida, foram as travessias dos rios Paraná e Paraguai, devido à largura dos mesmos. A solução emergencial e temporária foi a navegação, em ambos os casos. No Rio Paraná a travessia dos vagões (composições de cargas) era feita por balsas que, por sua vez, eram auxiliadas por locomotivas manobreiras nas duas margens do rio. Os passageiros faziam a travessia por um navio auxiliar, por medida de segurança. Com a inauguração da Ponte Francisco de Sá, de estrutura metálica, em 1926, a estação de Jupiá foi transferida para território sul-mato-grossense.

As condições no Rio Paraguai eram mais complexas, e Corumbá ficava a 78 quilômetros (rio acima) da estação de Porto Esperança, inaugurada em 1912. A solução encontrada foi a utilização de um “navio a vapor” para cobrir o trecho Porto Esperança-Corumbá, cuja viagem durava aproximadamente doze horas. A Ponte Barão do Rio Branco (hoje Eurico Gaspar Dutra), iniciada em 1937, foi inaugurada em 1947, no governo Dutra.

Os trilhos chegaram à Corumbá em 1952. Mas como a estação está localizada distante do leito do rio construiu-se um pequeno ramal até Ladário (município enclave de Corumbá), nas proximidades da Base Naval da Marinha. Serve, principalmente, à indústria de cimento Itaú.

A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil foi um importante instrumento para o povoamento e a urbanização de Mato Grosso do Sul porque gerou empregos e fixou funcionários e suas famílias ao longo dos ramais. Estimulou o comércio e a produção de subsistência, além do artesanato e da industrialização. Representou importante papel de integração geográfica, econômica, social e política.

A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil perdeu sua autonomia administrativa e operacional ao ser incorporada à Rede Ferroviária Federal S.A., criada pela Lei 3.115, sancionada pelo presidente Juscelino Kubistchek em março de 1957. A RFFSA era uma sociedade de economia mista, vinculada ao Ministério dos Transportes, com a finalidade de concentrar todo o patrimônio ferroviário pertencente à União (18 ferrovias regionais). Era a opção do governo pelo transporte de cargas por caminhão, na tentativa de atrair a indústria automobilista e de autopeças. Opção política que marcou o início do sucateamento das ferrovias, que ocorreria nas décadas seguintes.

Até o final dos anos 1960 a NOB era uma unidade ferroviária de sucesso, geradora de riquezas e empregos, apesar das dificuldades de manutenção. Sustentou o desenvolvimento econômico e social de várias cidades de Mato Grosso do Sul, tais como Três Lagoas, Ribas do Rio Pardo, Campo Grande, Aquidauana, Miranda, Corumbá, Sidrolândia, Maracaju e Ponta Porã. Integrou as fronteiras do Paraguai e da Bolívia, criando laços de amizades pan-americanas.

Nos anos 1970 e 1980 o sucateamento passou a ser ostensivo. De 1996 a 2009 funcionou apenas como transporte cargueiro deficitário, uma vez que o governo criava incentivos para o transporte rodoviário.

A “estrada de ferro” influenciou o quadro político partidário ao longo de seus ramais, sendo os mais importantes filhos da NOB, politicamente, Pedro Pedrossian e Philadelpho Garcia, do lado sul-mato-grossense. Ulysses Guimarães, no lado paulista, era um dos beneficiários pelos votos dos ferroviários, entre outros políticos de menor expressão, ou importância, de ambos os lados do Rio Paraná.

A RFFSA, em 1992, foi incluída no Programa Nacional de Desestatização com o objetivo de se transferir os serviços de transporte ferroviário de carga para o setor privado e, consequentemente, a extinção oficial do transporte de passageiros. O programa estabeleceu a segmentação do sistema ferroviário em seis malhas regionais e a concessão dos ativos operacionais, mediante arrendamento por 30 anos, aos novos concessionários. A Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA) foi incorporada à RFFSA para efeito de privatização de sua malha, em 1998.

A irresponsável transferência do patrimônio público (uma malha de 22 mil quilômetros de linhas, com toda a infraestrutura operacional – locomotivas, vagões, instalações, prédios, veículos, máquinas, equipamentos e demais bens vinculados à operação ferroviária), já no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), para o patrimônio de grupos privados foi efetivada no período de 1996/1998, sem nenhuma contrapartida.

Os grupos empresariais beneficiados pelos arrendamentos, as chamadas concessionárias operadoras das ferrovias, foram: Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), Ferrovia Centro Atlântica (FCA), MRS Logística S.A, Ferrovia Bandeirantes (FERROBAN), Ferrovia Novoeste S.A., Ferrovia Teresa Cristina S.A., América Latina e Logística (ALL). Isto sem considerar os “sócios ocultos”.

A rede operada pela NOB, com a denominação de “Malha Oeste”, foi a primeira ferrovia a ser vendida (ou presenteada), em 1996. A compradora foi a Ferrovia Novoeste S.A., que dois anos depois fundiu-se com a Ferronorte e com a Ferroban através do consórcio Brasil Ferrovias S.A.

A RFFSA era a responsável pela fiscalização dos arrendamentos contratados. Entretanto, a empresa de economia mista foi dissolvida pelo Decreto nº 3.277, de 07/12/1999, (alterado pelo Decreto 4.109, de janeiro/2002, pelo Decreto 4.839, de setembro/2003, e pelo Decreto 5.103, de junho/2004). Sua liquidação foi iniciada 10 dias após, sob a supervisão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, através do Departamento de Extinção e Liquidação (DELIQ).

A Novoeste, em 2002, incorporou alguns trechos paulistas de bitola métrica, formando a chamada Novoeste Brasil que, em 2006, fundiu-se com a Brasil Ferrovias e com a América Latina Logística. No mesmo ano a nova empresa comprou o espólio da antiga NOB, que pertencia ao grupo americano Noel Group.

A RFFSA foi extinta, oficialmente, pela MP 353, de janeiro/2007, estabelecida pelo Decreto 6.018, de janeiro/2007, sancionado pela Lei 11.483. O Decreto 6.769, de fevereiro/2009, deu nova redação ao Decreto 6.018. Em 2015 a América Latina Logística se fundiu com a Rumo Logística, pertencente à Cosan, que passou a se chamar Rumo-ALL.

Os ativos da empresa passaram para a União, que foi autorizada a vender os bens imóveis. Foi criada, também, uma inventariança para identificação dos bens, direitos e obrigações da extinta Rede. O governo garantiu créditos extraordinários da ordem de R$ 452 milhões para custeio da inventariança, sendo R$ 300 milhões destinados à criação do Fundo Contingente para quitação de possíveis passivos que pudessem colocar em risco o funcionamento das concessionárias que arrendaram as malhas ferroviárias.

O interessante é que ninguém foi processado ou preso por corrupção, apesar de todos os descalabros administrativos observados de 1957 aos dias atuais, passando incólume por todos os governos. E não foi por falta de denúncias e comprovações de desmandos administrativos. Os interesses políticos menores predominaram.

A Malha Oeste, em 1996, foi concedida (arrendada) por trinta anos para a Ferrovia Novoeste S.A. que, em 2002, foi rebatizada de Novoeste Brasil e, em 2006, fundiu-se com a Brasil Ferrovias e com a América Latina Logística. Em 2015 A América Latina Logística fundiu-se com a Rumo Logística, pertencente ao grupo Cosan, passando a se chamar Rumo-ALL. Consta que em todas essas fusões não houve desembolso financeiro para os envolvidos nas transações, que só acumularam dívidas para com o Tesouro Nacional. Muitas campanhas eleitorais foram sustentadas por essas operações.

A concessão da Malha Oeste se extinguirá em 2026, quando toda a sucata restante deverá retornar ao patrimônio nacional, sem prejuízo para as concessionárias. Apesar de o sucateamento processado nos últimos vinte anos ter deixado pouca coisa, quase nada (o patrimônio foi canibalizado pelas concessionárias), a concessão vale uma fortuna, em termos empresariais, e os beneficiários da “privataria” não querem perde-la. É uma “reserva técnica” para futuras negociações.

Para não perderem os privilégios, bolaram um esquema com o governo de Mato Grosso do Sul para que as concessionárias possam continuar sugando o patrimônio da Malha Oeste até depois de extinta a concessão. Para tanto, foi criado um consórcio empresarial formado por grupos econômicos (Rumo-ALL, Ferroviária Oriental (Bolívia), Ferroviária Andina (Bolívia), Transfesa, MP Trade (China/Brasil) e Hube Intermodal Três Lagoas) que se diz interessado em recuperar e operar a Malha Oeste desde agora até depois do final da atual concessão.

O tal consórcio, então, fez uma “acadêmica proposta” de integração das economias brasileira e boliviana: implantariam a Ferrovia TransAmericana, ligando o oceano Pacífico (porto de Ilo, no Peru) ao oceano Atlântico (porto de Santos), passando pela Bolívia e Mato Grosso do Sul (Corumbá, Campo Grande, Ponta Porã e Três Lagoas). Seria um modal para transporte de cargas a curta distância, considerando que a região não tem um produto com volume suficiente para garantir a viabilidade do projeto.

O marketing do empreendimento ficou por conta do governador Reynaldo Azambuja (PSDB) que, politicamente desgastado, tenta a reeleição. Ele argumenta que a TansAmericana faz parte da Rota Integrada Latino-Americana (Rila), rota que seria formada pelo itinerário Santos-Corumbá, Corumbá-Santa Cruz de la Sierra-Cochabamba. Outro sonho de marqueteiros mal informados, que ainda não está no papel (só existe nos slides dos secretários e dos cabos-eleitorais do governador).

O plano de marketing não convenceu ninguém, apesar dos gastos com a divulgação feita com recursos do tesouro estadual.

O fantasioso “projeto” informa que se pretende utilizar os 1.973 quilômetros de trilhos administrados pela “Rumo Malha Oeste”, os quais deverão ser integralmente reconstruídos. Aí surge um pequeno entrave: seriam necessários (estimativas aleatórias do governo estadual) cerca de R$ 23 bilhões. A solução encontrada pelos “empreendedores”, apoiados pelo governo de Mato Grosso do Sul: a) solicitar ao governo federal garantia de prorrogação da concessão para a Rumo por mais trinta anos; b) inclusão da TransAmericana no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI); c) declaração de prioridade no Plano Nacional de Logística (PNL).

Apesar do empenho dos políticos sul-mato-grossenses da base aliada de Reynaldo Azambuja, o “projeto” não foi incluído no PNL, muito menos no PPI, o que inviabiliza qualquer possibilidade de apoio financeiro dos bancos internacionais. Banqueiro não se sensibiliza com marketing eleitoral, por mais interessante que pareça a primeira vista, até porque são especialistas em “privataria”, como demonstra a história brasileira. Os modais de transporte ferroviário e fluvial são importantíssimos para o desenvolvimento de Mato Grosso do Sul e do Brasil, mas é preciso que se apresente estudos sérios de viabilidade técnica e econômica.

É fundamental que haja mais seriedade no tratamento dos recursos públicos, em todas as instâncias do poder. Os R$ 6 bilhões que certo banco alemão prometeu para a reconstrução dos trilhos da antiga NOB só viriam se o governo Federal incluísse o trecho no PPI e no PNL, o que não aconteceu e, dificilmente, acontecerá nos próximos governos.

Foto de Landes Pereira

Landes Pereira

Economista e Professor Universitário. Ex-Secretário de Planejamento da Prefeitura de Campo Grande. Ex-Diretor Financeiro e Comercial da SANESUL. Ex-Diretor Geral do DERSUL (Departamento Estadual de Estradas de Rodagem). Ex-Diretor Presidente da MSGÁS. Ex-Diretor Administrativo-Financeiro e de Relações com os Investidores da SANASA.

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