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A atroz semelhança entre um mendigo faminto e um militante de esquerda sem argumento

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Estava no mercado, ontem à tarde, quando estranhei o comportamento e o aspecto de um cliente: agitado, roupas sujas, calças amarradas com barbante, sacola de plástico em volta da cabeça feito uma bandana. Mendigo - pensei - vindo converter as esmolas em comida.

Já era minha vez no caixa, minutos depois, quando ele passou, acelerado, furou várias filas, me empurrou e depositou suas compras (pacote de açúcar, leite em pó, pote de nescau) na esteira ao lado, onde um senhor finalizava a compra.

- Paga pra mim.

Não pedia. O tom era de exigência. Ou de urgência, antes que os seguranças se apercebessem de qualquer coisa e frustrassem seu plano.

O cliente, intimidado, autorizou que fossem registrados os três itens. Chegaram os seguranças, mas não houve acordo para que o mendigo saísse e aguardasse do lado de fora.

Ele mesmo pegou um punhado de sacolas, guardou suas coisas, agradeceu batendo no peito e sumiu na chuva. Seu golpe (era, com certeza, um golpe) tinha dado certo.

Tive uma pena enorme dele (quem precisa de leite em pó, açúcar e nescau é porque tem filho pequeno) e certo medo da sua ousadia (pessoas desesperadas são capazes de gestos desesperados).

Cheguei em casa, abri o vinho que tinha comprado e lembrei que começava dali a pouco um evento na livraria Argumento. Mesmo com a chuva e o frio, larguei o vinho pela metade - e a cena do mercado para trás - e piquei a mula pro Leblon.

Começou a conversa entre o Ricardo Rangel e o ministro da Cultura e estranhei o comportamento e o aspecto de um cliente / convidado: agitado, roupas largadas, bolsa a tiracolo, ávido de estabelecer contato visual. Um rato de livraria - pensei - desses que fingem folhear livros e vão embora sem comprar nada.

Mas de algum lugar, ao fundo, vinha um "olê olê olê olá, lulá lulá". Uma senhora panfletava. Outra interrompeu o ministro, indignada com o uso da palavra "liberdade" por parte de um "golpista". Era o início de um flash mob petista.

Ministro e (pré)candidato não caíram nas provocações, o dono da casa usou de toda a diplomacia, os seguranças devem ter recitado mantras, e a militância deixou o recinto após a leitura do que parecia ser um manifesto - e era só uma postagem favorável à Lava Jato (incompatível, segundo a trêmula leitora, com um ministro de um governo golpista).

Enquanto gritavam lá fora, denunciando os fascistas e antidemocratas, voltei a pensar no mendigo que, horas antes, não pediu licença e impôs sua vontade a um cliente no supermercado.

Não que houvesse algo em comum entre o moço pobre (cujo filho àquela hora já estaria temporariamente alimentado, sob alguma marquise da Barra) e os militantes sem argumento, cujos perfis nas redes sociais logo estariam alimentados com vídeos da sua performance de guerrilha no Leblon.

Talvez só o as roupas largas. O olhar transtornado. Um certo desespero na voz. E o fato de eu ter tido pena: pessoas acuadas são capazes de tudo.

Foto de Eduardo Affonso

Eduardo Affonso

É arquiteto no Rio de Janeiro.

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