desktop_cabecalho

As grandes tragédias do Brasil e a pior de todas as tragédias... Quem tem a culpa?

Ler na área do assinante

Somente este ano, que mal começou, o Brasil se deparou com duas grandes tragédias que poderiam ter sido evitadas, e cujos saldos foram centenas de vidas brutalmente ceifadas pela avalanche de lama, e uma dezena de jovens vidas consumidas pelo fogo. Uma lástima.

Se aceitar os resultados das tragédias causadas por desastres naturais é algo que para nós não é fácil, mesmo que não tenhamos sido de alguma forma envolvidos nas suas consequências, imaginem o que deve ser para aqueles que perderam entes queridos. Conviver com tragédias que poderiam ter sido evitadas e que foram causadas pelo descaso e pela negligência é algo infinitamente pior. Além da dor e do sofrimento pela perda, há o elemento da inconformação. Só quem sabe avaliar a extensão desse sentimento é quem passou ou está passando por isso.

A apuração da culpa e a punição dos culpados não traz as vítimas de volta, mas certamente causa algum conforto, pelo sentimento de justiça feita. Mas qual justiça, se aqueles que são diretamente responsáveis pelas tragédias são os primeiros a posar de "vítimas"? Qual justiça, se no Brasil a impunidade e o esquecimento sempre andaram de mãos dadas?

Vale a pena aqui fazer uma breve retrospectiva pegando apenas alguns desses tristes eventos que culminaram na morte de um grande número de pessoas.

ELEVADO ENGENHEIRO FREYSSINET

No Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 1971, um trecho de 50 metros do Elevado Engenheiro Freyssinet desabou sobre o cruzamento da Rua Haddock Lobo com a Avenida Paulo de Frontin, na Tijuca, matando 29 pessoas e ferindo outras 18.

Erros no cálculo estrutural e também a abertura de janelas de inspeção fizeram com que apenas um caminhão betoneira passando pelo viaduto – ainda em construção – provocassem o colapso da estrutura. O engenheiro Sérgio Marques de Souza foi condenado a um ano e quatro meses, mas não ficou preso porque conseguiu um sursis, uma dispensa do cumprimento da pena. Quem pagou pelos erros alheios? As 29 pessoas que morreram.

EDIFÍCIO ANDRAUS

Em 24 de fevereiro de 1972 a cidade de São Paulo viu arder um dos seus grandes prédios comerciais – o Edifício Andraus. O prédio de 32 andares foi tomado pelas chamas, causadas por um curto-circuito proveniente de uma sobrecarga elétrica no segundo andar. As chamas foram tomando os andares superiores. Foram 16 mortos, e o número de vítimas só não foi maior graças ao resgate aéreo, cujos pilotos extremamente habilidosos fizeram a maioria dos salvamentos.

Uma sobrecarga não ocorre dissociada de um erro técnico na instalação, e erros técnicos acontecem associados à falta de vistorias sérias, rígidas e que exijam a utilização de padrões de segurança corretos.

EDIFÍCIO JOELMA

Em 1974 tivemos a clara demostração de que a lição não havia sido aprendida com o evento do Andraus, ocorrida a quase exatos dois anos antes, e outra tragédia abala São Paulo. Por volta das 08h50 do dia 1º de fevereiro o edifício Joelma, localizado no Vale do Anhangabaú, pegou fogo depois de um curto-circuito no sistema de refrigeração do Banco Crefisul, que ocupava boa parte do prédio.

O incêndio começou no 12º andar, durou mais de três horas, destruiu 14 pavimentos, deixando como saldo final 187 mortos e mais de 300 feridos. Não houve a responsabilização de ninguém e a conta foi paga com a vida, por aqueles que não tinham culpa no evento.

PAVILHÃO DO PARQUE DAS GAMELEIRAS

Passados apenas três dias do incêndio do Joelma, do qual o Brasil não havia ainda se recuperado emocionalmente, outra tragédia acontece, agora em Belo Horizonte. Às 11h45 do dia 4 de fevereiro toda estrutura – 10 mil toneladas – do pavilhão em construção no Pargue das Gameleiras veio abaixo.

A obra estava atrasada. O então governador de Minas, Israel Pinheiro, vivia seus últimos dias no cargo, pois deixaria o Palácio da Liberdade em 15 de março de 1974. Com esse atraso, o governo começou a pressionar os trabalhadores para que as obras terminassem antes do fim do mandato.

Sem ouvir os operários, o governo mandou retirar as vigas de sustentação, o que foi feito apesar das recomendações contrárias e avisos dos operários que já vinham alertando o governo sobre fissuras e estalos nos alicerces. Com a queda , mais de 69 trabalhadores morreram e muitos ficaram por meses internados em hospitais da capital mineira – vários deles sofreram amputações. Ninguém foi punido. Quem pagou? 69 pessoas que morreram no local e outros que vieram a morrer no hospital.

BATEAU MOUCHE

Na noite do dia 31 de dezembro de 1988 a embarcação Bateau Mouche IV zarpou do Iate Clube do Rio de Janeiro, na Urca, para as comemorações da virada do ano em Copacabana. O barco tinha a capacidade para 62 passageiros, mas levava 142. Assim que a embarcação deixou a boca da barra, ou seja, a saída da baía de Guanabara, uma movimentação de passageiros no deck superior fez com que o barco adernasse e afundasse. 55 pessoas morreram.

Em 1993 os sócios majoritários da empresa proprietária do barco foram condenados por homicídio culposo (???), sonegação fiscal e formação de quadrilha, em maio de 1993, a quatro anos de prisão em regime semiaberto (só dormiam na prisão).

Em fevereiro de 1994, graças a uma lei extremamente benevolente e também a uma sentença estúpida, em vez de retornarem para a prisão, eles fugiram para a Espanha, onde vivem muito bem. Alguns aguardam uma extradição que jamais acontecerá. 55 pessoas efetivamente pagaram com a vida pela omissão e pela irresponsabilidade de outros.

Vale lembrar que tragédias semelhantes ocorrem quase todos os anos nos rios da Amazônia, deixando até saldos maiores de vítimas. E ninguém paga por isso... só as vítimas.

BOATE KISS

Vamos dar um salto para o fatídico dia 27 de janeiro de 2013. Na madrugada daquele dia, centenas de jovens se divertiam na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Por volta das 2h30 min durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, a segunda banda a se apresentar na noite, o irresponsável vocalista da banda resolveu detonar um sinalizador de uso externo no interior da boate.

O teto revestido por material inflamável pegou fogo e em cerca de três minutos uma fumaça espessa se espalhou por toda a boate. Numa ação criminosa, os seguranças não permitiram inicialmente que as pessoas saíssem pela única porta do local, por acharem que se tratava de uma briga, e que as pessoas estavam saindo sem pagar. Foram 242 mortos.

Seis anos se passaram e não tem ninguém na cadeia. Não houve sequer a responsabilização do Corpo de Bombeiros local, que era responsável pela vistoria de segurança e emissão do certificado de conformidade, sendo que a casa não tinha saída de emergência e havia materiais inflamáveis por todos os lados.

Quem pagou por isso até agora? As 242 vítimas e mais as 242 famílias que, passados seis anos da tragédia, continuam de luto, não viram a justiça ser feita e muito provavelmente não verão.

MARIANA

Na tarde de 5 de novembro de 2015 no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km do centro do município de Mariana-MG, um estrondo é ouvido. A barragem do Fundão, construída para acomodar rejeitos tóxicos se rompeu, e um verdadeiro tsunami de lama invadiu o pequeno lugarejo, levando tudo o que estava em seu caminho. Foi uma tragédia de proporções monumentais, com um impacto ambiental ainda impossível de ser calculado, e que causou a morte de 19 pessoas.

O Ministério Público de Minas Gerais havia sido contrário à renovação da licença de funcionamento da barragem, tendo solicitado a realização de análise de ruptura e um plano de contingência para o caso de riscos ou acidentes. A barragem já apresentava riscos e no entanto funcionava normalmente graças a alvarás concedidos sabe-se lá por quanto. Houve negligência, sabe-se nomes e funções, mas ninguém foi responsabilizado criminalmente até hoje e ninguém foi punido. Quem pagou? 19 pessoas... com a vida.

CICLOVIA TIM MAIA

Construída para ligar a praia do Leblon a São Conrado e margeando a encosta da Avenida Niemeyer, a ciclovia Tim Maia havia sido inaugurada em janeiro de 2016. Apenas três meses após a sua inauguração, no dia 21 de abril, uma onda mais forte – devido a uma ressaca - atinge parte da ciclovia e 20 metros da sua estrutura desmoronam.

A construção tinha várias falhas no seu projeto e na sua construção. Os cálculos não levavam em conta a possibilidade de uma ressaca e os efeitos de uma onda mais forte sobre a estrutura da ciclovia, cujo piso era apenas assentado sobre as colunas de sustentação. Duas pessoas morreram. Três anos se passaram e ninguém sofreu qualquer punição.

BRUMADINHO

No dia 25 de janeiro de 2019 a certeza da impunidade, a irresponsabilidade técnica e a benevolência do governo em conceder autorizações causaram aquele que é considerado o maior desastre com rejeitos de mineração no Brasil. Repetindo Mariana, só que em proporções muito maiores. a barragem de rejeitos localizada em Brumadinho-MG se rompe resultando em um desastre com mais de 160 mortos confirmados (até agora) e 200 desaparecidos.

Classificada como de "baixo risco" e "alto potencial de danos", era controlada pela Vale S.A – mesma empresa responsável pela barragem de Mariana.

A única certeza que temos até agora é que ninguém será punido.

NINHO DO URUBU

No último dia 8 de fevereiro o Brasil acordou com a notícia de mais uma tragédia. Um incêndio causado por um curto-circuito no ar condicionado de um dormitório ceifou a vida de dez crianças cheias de sonhos.

O local não possuía alvará de funcionamento, quem deveria fazer um laudo técnico de segurança não fez, quem deveria fiscalizar não fiscalizou, quem deveria interditar a área não interditou e o local funcionava normalmente, à parte da legalidade.

Mais uma vez, quem será responsabilizado? Ninguém. O caso não passará de homenagens aos mortos e em pouco tempo será apenas uma história a ser lembrada.

A PIOR DE TODAS AS TRAGÉDIAS

Todas esses mortos foram vítimas daquela que eu chamo de "mãe de todas as tragédias", e que é a nossa justiça. Essa mesma justiça que com seus códigos carregados de erudições e pouca objetividade garante infindáveis recursos, cometendo a negligência de permitir a impunidade.

Leis ultrapassadas, cheias de brechas e permissivas em excesso pelos infindáveis recursos, traduzem na sua linguagem pomposa e rebuscada que as únicas sentenças advindas da sua morosidade e ineficiência são aquelas que condenam as vítimas ao esquecimento ou que precificam cada corpo.

E é justamente por isso que vamos continuar acordando escandalizados pelas tragédias, que vão continuar acontecendo pela omissão da justiça, que por sua inoperância faz e sempre fez cara de paisagem diante das perdas de vidas humanas, e tem em suas mãos o sangue de todas essas vítimas, por ter garantido a impunidade e até a fuga dos culpados, abençoando as negligências em vez de punir exemplarmente os responsáveis.

Aqui Juízes se sentam sobre processos que se arrastam até a prescrição ou são cooptados por aqueles que deveriam perder a liberdade. Na concepção da Justiça brasileira, apenas valorar monetariamente os corpos e forçar as indenização das famílias parece ser suficiente. Não é. O dinheiro não é suficiente para trazer a sensação de que a Justiça foi feita e muito menos tem qualquer caráter didático que venha a prevenir o acontecimento de outras tragédias e mais perdas de vidas.

Todavia, o sangue dessa gente também respinga em nós. Esquecemos que a Justiça deve ser feita para dar ordenamento a uma sociedade e não para ser propriedade e poder absoluto daqueles que a operam, e cuja manipulação muitas vezes se faz com descaso e apartada de qualquer humanidade.

Abaixamos a cabeça para os "intocáveis de toga donatários incontestes de toda a verdade" e adotamos uma conduta cordata diante de discrepâncias como os recursos dos recursos dos recursos, em vez de pressionarmos fortemente os legisladores para que promovam as mudanças necessárias nas Leis, e também aos operadores para que apliquem essas Leis de acordo com a lógica e com o rigor que se espera.

Mas o que esperar de uma Justiça que nada de braçada no corporativismo e que pune o Juiz que erra com o prêmio de uma aposentadoria compulsória e salário integral?

O que nos falta: Dura Lex Sed Lex. Centenas de mortos e ninguém preso. Experimente estar desempregado e atrasar 3 meses de pensão alimentícia, e verá o quanto a Justiça é implacável, na forma de um Oficial de Justiça batendo em sua porta...

Ler comentários e comentar