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STF quer ser pinguela de rio seco...

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Quando o Supremo Tribunal Federal abandona sua prerrogativa de existência — que é a guarda da Constituição da República — e decide fazer uso do poder da toga para justificar o avanço de seus tentáculos sobre as liberdades individuais — em especial as liberdades de pensamento e expressão —, sobre as ideologias e sobre a luz do sol — “o melhor desinfetante”, já dizia o ex-ministro Ayres Britto —, rasgam-se independência e imparcialidade e abertas estarão as porteiras para o triunfo das incertezas.

O século XXI trouxe consigo um dos maiores avanços civilizacionais em termos de democracia. A era das redes sociais caracteriza-se, sobretudo, pela explosão horizontal da informação e do conhecimento, ampliando de forma quase equânime o poder de cada partícipe do jogo democrático, seja ele um parlamentar, um presidente da República ou um cidadão comum com acesso à internet.

Não por acaso, a eleição de 2018 no Brasil foi decidida nas redes, replicando fenômeno idêntico já avistado nos EUA dois anos antes e na França em 2017. A plataforma virtual é hoje, em todo mundo civilizado, a arena política. É nela que são realizadas as alianças e nela são travados os verdadeiros embates. Não reconhecer sua existência e seu poder é uma negativa à Política, é negar a evolução da Democracia.

Aquele que nega a Política e a Democracia, também nega a Justiça.

Por óbvio, o advento de um novo mecanismo de relação social demanda algum tempo para ser absorvido e compreendido, bem como exige uma calibragem para que limites éticos não sejam virtualmente pisoteados pela multidão que se adensa. Porque agora, há a garantia de gravidade da própria voz no espaço e no tempo, algo que antes era uma confortável reserva existencial de colarinhos-brancos, ternos, gravatas e togas.

Hoje, trajando uma beca ou um pijama, em traje de gala ou desnudo, o cidadão é capaz de exercer protagonismo no estado democrático de direito, da mesma forma que pode se tornar seu antagonista. Daí a necessidade de uma calibragem, que não virá imposta à força.

Assim como tudo que realmente importa na vida, o equilíbrio no universo virtual é resultado de uma série de fatores, dentre os quais destacam-se a educação, como aspecto de boa convivência e bom senso, e a legalidade, como instrumento garantidor do princípio ético.

Portanto, aquele que nega a Política, a Democracia e a Justiça, perde a legitimidade neste tempo de profusão da cidadania virtual.

É exatamente essa dinâmica complexa e espraiada que coloca em xeque umbigos outrora autoproclamados divinos. Como explicar para um ministro do STF que sua expectativa de divindade está mais para um transtorno dissociativo de identidade do que para o exercício de suas funções institucionais? Hercúlea é a tarefa. O cachimbo do poder quase ilimitado e vitalício entorta não apenas bocas. Verga egos e almas.

Não espanta, portanto, que o atual presidente do STF tenha decidido, unilateralmente, patrocinar uma caçada nas redes sociais contra aqueles que ousam questionar o status quo de Suas Santidades, contando com o apoio de entidades cardinalícias como a OAB.

Quando Dias Toffoli, em sacrossanta liberalidade, escolhe o ministro Alexandre de Moraes como investigador, promotor e juiz da causa, instaurada está a excepcionalidade em flagrante vilipêndio, entre outros, ao basilar princípio do juiz natural, estabelecido ao Art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição de 1988 da República Federativa do Brasil, consagrado como cláusula pétrea em seu Art. 60, §4º, incisos III e IV, porque garantidor da separação dos Poderes e dos direitos fundamentais.

É uma infâmia para o direito brasileiro que se permita a assunção de aberrações jurídicas em franca violação aos ditames constitucionais. Se o STF é incapaz de respeitar a Constituição que, cumpre reiterar, por pressuposto de existência deveria guardar, dá-se a fratura da legitimidade. Pior: em termos institucionais, aquele que não cumpre seu dever, caduca.

Essa é a quadra nada alvissareira dos nossos dias, parafraseando obliquamente o ministro Marco Aurélio Mello, um dos decanos na atual composição do STF. Negar a horizontalidade e pretender a verticalização do pensamento na era das redes sociais é causa matriz da secura dos rios de diálogo. Ao insistir ser guilhotina, a Corte Suprema caduca em legitimidade. Nessa toada, não demora e o Supremo Tribunal Federal será apenas uma inútil e dispensável pinguela de rio seco.

Foto de Helder Caldeira

Helder Caldeira

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
*Autor dos livros “Águas Turvas” e “A 1ª Presidenta”, entre outras obras.

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