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Exaure-se a presunção de inocência com o trânsito em julgado da sentença, ainda que pendente a coisa julgada

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Um longo e persistente exame da matéria, de modo sistêmico, através de centenas de casos concretos, resultou na percepção de que o Direito Processual Penal brasileiro convive com insólita dicotomia entre os conceitos de trânsito em julgado e coisa julgada, registre-se, não raras vezes tratados de forma ambígua.

Lição do jurista Eduardo Espínola Filho evoca o entendimento de que transita em julgado a sentença penal condenatória a partir do momento em que já não caiba recurso com efeito suspensivo. Ainda que caiba recurso (desprovido de efeito suspensivo, a exemplo dos recursos para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal), o que fica por ocorrer, após o último pronunciamento do último órgão jurisdicional provocado, é a coisa julgada, de conceito diverso, porque é esta que encerra as ideias de irrecorribilidade e imutabilidade do julgado (quando não cabe mais recurso de espécie alguma); entendimento que se conforta com o teor do artigo 502, do novíssimo Código de Processo Civil.

Vale relembrar que o princípio constitucional da presunção de inocência remete o intérprete ao conceito de trânsito em julgado, não ao de coisa julgada, merecendo destaque a observação de que as duas expressões são utilizadas em diferentes incisos (XXXVI e LVII) do próprio artigo 5º, da Constituição Federal de 1988; insofismável evidência de que o Poder Constituinte optou por recepcioná-las com sentidos diferentes, não havendo razão para abstração daquelas acepções reveladas na brilhante lição do supramencionado jurista.

Efetivamente, esgotada a segunda instância, a decisão condenatória transita em julgado de imediato, seja porque os recursos suscetíveis (excepcionais) não têm efeito suspensivo, seja porque as ideias de irrecorribilidade e imutabilidade do julgado não dizem respeito ao conceito de trânsito em julgado, mas ao conceito de coisa julgada; esta sim, que só se consuma com o último pronunciamento da última instância provocada.

Tratando-se de condenado, o esgotamento da segunda instância comporta, dentre outras, as seguintes considerações:

1ª - eventuais recursos do condenado (para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal), dispostos à matéria de direito, não devolvem o reexame de fatos e provas, adiando apenas a ocorrência da coisa julgada, a partir da qual não cabe mais recurso de espécie alguma;

2ª - não se deve conceber que, encerrada a fase de formação da culpa, aquele que já se valeu do duplo grau e foi dito culpado pela segunda instância, a ponto de lhe ter sido imposta uma pena, além de sequer fazer jus a recurso com efeito suspensivo - muito menos, para ver rediscutida ou valorada a sua culpa -, ainda possa ser tido como “inocente”; até porque, entendimento diverso implicaria em claro descompasso com a lógica do pensamento científico.

Em outras palavras, em contexto tal, já não prevalece a condição de réu presumidamente inocente, mas de condenado com culpa formada, suficientemente comprovada;

3ª - a partir de então, não há falar em execução “antecipada” da pena imposta, mas em execução oportuna, através da execução penal provisória, em decorrência de decisão condenatória transitada em julgado, porquanto insuscetível de recurso com efeito suspensivo.

Constata-se, pois, que a lição aqui relembrada conforma a dicotomia conceitual, baliza a extensão do princípio constitucional da presunção de inocência (do estado de inocência, ou da não culpabilidade), acolhe o princípio do duplo grau de jurisdição e assegura eficácia ao combate à criminalidade, deixando assim descortinado, de modo irretocável, o conceito de trânsito em julgado, objeto do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988; preceito cuja adequada interpretação, além de preservar a garantia fundamental em questão, confere efetividade às decisões judiciais e mitiga o sentimento de impunidade que atormenta o povo brasileiro.

(Texto de Cláudio Fleury Barcellos. Procurador de Justiça MPMG)

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