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Vinho, lagosta e respiradores – Ensaio sobre a psicologia do isolamento no país da “Galera”

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Ontem, freudianamente, eu explicava por telefone para uma colega de Aracaju a minha teoria de que nossa malandragem tem origem na nossa sexualidade.

Sim, nós brasileiros e brasileiras somos (ou pensamos que somos) os bons de cama.

Nós saímos do Brasil e achamos que podemos seduzir e levar pra cama qualquer mulher do Mundo. Nossas mulheres são (ou pensam que são) as mais lindas do planeta e que ninguém pode resistir a elas.

Dessa nossa fantasia nasceu a tentativa frustrada, o intento infeliz de sublimação radical e é dela que vem nossa malandragem na vida social, essa nossa malandragem amoral e anticívica, essa malandragem promíscua e bárbara que contamina todo estamento, toda administração pública e todo serviço essencial.

Da contaminação da vida pública nasce um estamento que se sexualiza. Da contaminação da vida íntima a sexualidade é burocratizada, politizada, administrada e registrada em cartório... é publicada na internet, é discutida por especialistas, por doutores, pelos intelectuais…

Ah, como é bom quando o Ministro do Supremo convida aquela advogada de Brasília, tão bonita, tão jovem, tão gatinha, para saborear o vinho e a lagosta que poderiam comprar, com o dinheiro público gasto, um respirador para ser usado na COVID19.

Que maravilha quando a Deputada usa dinheiro público para pagar o hotel em SP (ou RJ, sei lá..) onde ela se encontrou com aquele ex-senador tão “lindinho”...

Que delícia encontrar nas livrarias dos shoppings, e até nos supermercados e farmácias, livros e mais livros de jovens escritoras brasileiras que discorrem sobre a vida da “nova mulher”, da “mulher independente”, da “mulher médica, juíza, jornalista ou empresária”….na cama…

Será que ela goza? Será que ela não goza? Mais importante do que tudo: se ela goza, será que goza como qualquer outra “mulher comum”? Afinal de contas, todas as mulheres tem que ter “direito a gozar” da mesma forma, né?

Se algumas não estão gozando, alguém deve ser culpado por isso! É caso de Polícia! Não interessa se é o capitalismo cruel, a revolução cultural comunista, o marido ou os filhos...Alguém é culpado e ponto final!

É...é a "malandragem", caro leitor ...a mesma malandragem que finge não saber que "um respirador NÃO é igual a um leito de UTI e que uma UTI não é a mesma coisa que um hospital". A mesma malandragem que coloca falsos médicos cubanos e estudantes do quinto ano de medicina para atender no SUS, a malandragem que diz que "em saúde pública qualquer coisa é melhor do que nada"...e por aí vai...

E no meio disso tudo chega o Sars-Cov2, o “bicho” como eu mesmo resolvi chamá-lo.

O bicho não quer saber de sexualidade nem de malandragem. O bicho não é de Esquerda nem de Direita, ele não é branco nem preto, não é gay nem hétero...O bicho não quer saber de maconha, de passeata, de aborto...Não se interessa pela Bolsa de Nova York, pela BOVESPA nem pelo desemprego…

O bicho só quer uma coisa – MATAR. O bicho quer matar o maior número de pessoas no menor tempo possível e contra ele só há uma coisa há fazer: isolar-se, separar-se, segregar-se…

“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade, tanto horror perante os céus?!” Estas frases eu berro sozinho aqui na frente do meu computador e o espírito de Castro Alves me responde: “Cale-se! Você não está no meu Navio Negreiro, você pertence à Galera”

Aí eu me dou conta de que sou brasileiro, de que Castro tem razão e de que eu pertenço mesmo à “galera”.

Que horror, meu Deus, ser brasileiro e estar sozinho, ficar preso em casa, não saber o que está pensando, o que está fazendo a “galera”.

A sexualização da vida pública e a burocratização da minha vida sexual me fizeram pertencer à “galera”.

Eu sou brasileiro, eu sou da “galera”, comigo ninguém pode… “Te cuida comigo que eu não ando sozinha”, escreveu certa vez uma imbecil comunista que é médica, sambista, mãe e preceptora de residência de Medicina “Comunistária”..tudo ao mesmo tempo lá no Rio de Janeiro…

Aí eu me dou conta de que a galera é um navio de escravos também, de escravos que remam, de escravos que estão acorrentados aos remos no porão do navio e que geralmente morrem afogados quando o navio é atacado e afundado pelos inimigos numa batalha naval.

Interessante, penso eu, na morte por COVID19 o paciente também morre com a sensação de estar se afogando...mas há uma diferença profunda, meu Deus, ele vai morrer sozinho, isolado, sem o contato com os parentes...alguns lembrariam que ele vai estar “sedado e não vai saber nem sentir nada”...e alguns seguidores de George Berkeley responderiam que então ele “já teria morrido”...enfim...deixa pra lá…isso é divagação de filósofo frustrado formado em Medicina...De um intensivista com “fama de louco”...

O importante é o seguinte: que medo terrível que nós, da galera, temos da solidão...que coisa incrível...que desgraça...Como nós precisamos da fila sem fim, do elevador cheio, do trem lotado, do ônibus com as pessoas se esmagando de tanta gente, dos estádios de futebol explodindo com tantos torcedores…

Ah, se o “bicho” soubesse como faz mal, para quem é “da galera”, precisar ficar sozinho ou confinado com outras pessoas...

Sim, ficar confinado com outras pessoas também é ficar sozinho, sim. Confinados com outras pessoas da nossa família nós estamos “sozinhos” porque estas nós já conhecemos completamente, ou acabamos conhecendo completamente e aí, rapidamente, nós acabamos nos sentindo sozinhos e a Rede Globo teria que nos dar um milhão de reais como dá para aqueles pobres diabos do Big Brother Brasil para que a gente aguentasse ficar com nossa própria família em casa, pô !!!

Não, não é isso que nós, “da galera”, queremos. Nós só não nos sentiremos sozinhos se estivermos completamente cercados de gente que sequer conhecemos, que não são nossos familiares, que não tem nada a ver conosco... e é por isso que gostamos da fila, do ônibus, do trem, do estádio...é isso que nós “da galera” queremos…é aí que podemos sexualizar nossa vida pública e burocratizar nossa vida sexual...é aí que está a morena gostosa que encontramos no ônibus, é nela que podemos nos encostar e, quem sabe até nos masturbar e gozar...e é na Delegacia da Mulher, na Delegacia de Todas as Mulheres, brancas ou pretas, é na Delegacia de Combate ao Orgasmo dentro do Ônibus, que ela pode nos denunciar…

Nosso orgasmo foi registrado, catalogado, se tornou público, foi criminalizado...É óbvio que nem todos nós gostamos de fazer isso, mas nós gostamos de saber disso, sim...Somos da “galera”, pô!

Enquanto tudo isso acontece, o bicho segue seu trabalho. O bicho não quer saber de nada disso que eu escrevi. Ele só quer MATAR e ponto final, mas como ele atrapalha a “galera”! Ah, ele atrapalha, sim!

O bicho atrapalha nossa vontade de transar dentro de nossas próprias casas, ele complica a vida do nosso estamento burocrático, ele dificulta a cobrança dos impostos do país com uma das maiores cargas tributárias do mundo, ele dificulta o dia a dia dos cartórios, dos procuradores, dos juízes, dos processos, dos alvarás e dos habeas corpus…do vinho e da lagosta!

Que bicho desgraçado, meu Deus! Ele acabou com a nossa malandragem! Ele é uma ameaça para nosso futuro!

Sim, para nosso futuro, sim! Nós só temos futuro, nós somos o país do futuro! Nós não temos passado nem presente, só futuro!

Somos o país do futuro e aí vem esse bicho maldito parar nossa economia, nossas indústrias, nossos negócios...e nosso tesão pela morena dentro do ônibus lotado ou pela advogada de Brasília.

Certa vez alguém escreveu que “nunca se está tão perto de Deus como quando se está sozinho”. O bicho vai ser então, creio eu, um teste para nossa fé e para nossa capacidade (como “galera”) de ficarmos sozinhos.

Enquanto o bicho segue matando, os Ministros seguem com seus salários de “autoridade”, com a verba do vinho e da lagosta que poderia ser usada nos hospitais, nas escolas, nos presídios...mas isso não faz diferença alguma para o bicho...

Se Maria Antonieta estivesse aqui no Brasil ela aliviaria minhas “preocupações filosófico freudianas” respondendo o seguinte pra mim:

“Estão com falta de ar e não tem respiradores, que usem leques para ser abanar” e para ela eu responderia com a frase de Hannah Arendt no fim do seu livro, “A Condição Humana”:

“Não há dor que não diminua, se uma História puder ser contada sobre ela”

(para Vanessa)

Foto de Milton Pires

Milton Pires

Médico cardiologista em Porto Alegre

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