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O Supremo Tribunal Federal e o Inquérito 4781: a maior fake news do Século XXI

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“Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito. HC 73.454, Relator Ministro Maurício Corrêa, j. 22-4-1996, 2ª T, DJ de 7/6/1996).”

Uma das maiores farsas do Século XXI está em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF), graças à omissão e subserviência do Congresso Nacional: trata-se do Inquérito 4781 (tribunal de exceção), instaurado inconstitucionalmente em 14.03.2019 sob o sistema inquisitório.

Esse sistema foi abolido explicitamente pela Constituição de 1988 em razão do advento do sistema acusatório, nos termos do art. 1º, caput (Estado Democrático de Direito) c/c art. 129, inc. I (Ministério Público como titular da ação penal). Talvez os professores de Direito da USP desconheçam esse fato, não o transmitindo para seus alunos.

O tal Inquérito 4781 é um inquérito fake, uma verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito, este introduzido na Carta Magna de 1988, princípio fundamental da República plasmado no artigo 1º, caput.

O estado de direito é aquele que se opõe ao estado baseado no uso arbitrário do poder, absolutamente incompatível com o sistema inquisitório, que surgiu como forma de salvaguardar os interesses de persecução do poder central, tendo prevalecido na Idade Média; sua derrocada se deu com a Revolução Francesa. A Constituição de 1967 não previa o Estado Democrático de Direito.

Conforme noticiou a Gazeta do Povo,

“O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um inquérito criminal para apurar notícias falsas (fake news) e ataques feitos a ministros da Corte. (...) “Em seguida, o presidente da Corte leu a portaria assinada por ele para a instauração do inquérito. ‘Considerando a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ânimos caluniante, difamante e injuriante, que atingem a honorabilidade e segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, resolve, como resolvido já está, nos termos do artigo 43 e seguintes do regimento interno, instaurar inquérito criminal para apuração dos fatos e infrações correspondentes em toda a sua dimensão'”.

A inconstitucionalidade – ou melhor, fake news! - encontra-se nesta frase: nos termos do artigo 43 e seguintes do regimento interno. A gravidade da situação é evidente: o artigo 43 do RISTF não é proveniente da Constituição nem da lei: provém de um mero regimento interno. Risível, se não fosse trágico, o desvio de finalidade que Toffoli atribuiu ao referido artigo.

Eis o teor do art. 43 do RISTF:

“Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

Ainda que sob a égide da Constituição de 1967 o STF não tinha prerrogativa para inserir o texto do art. 43 em seu RISTF, seu teor é claríssimo: a infração penal teria que ter ocorrido “na sede ou dependência do Tribunal”.

Entretanto, o ministro Dias Toffoli conseguiu transformar o que já era absurdo e teratológico num verdadeiro circo dos horrores: alegou que embora os supostos crimes não tenham sido praticados dentro do prédio do Supremo (ou seja, ele admite isso), os ministros, supostas vítimas das suspeitas investigadas, "são o tribunal". Vergonhoso é o silêncio constrangedor dos demais ministros a respeito do absurdo proferido por seu presidente; talvez até sintam comiseração por ele.

Mais adiante, o art. 46 do RISTF dispõe que

Art. 46. Sempre que tiver conhecimento de desobediência a ordem emanada do Tribunal ou de seus Ministros, no exercício da função, ou de desacato ao Tribunal ou a seus Ministros, o Presidente comunicará o fato ao órgão competente do Ministério Público, provendo-o dos elementos de que dispuser para a propositura da ação penal.

Vislumbra-se que o teor do art. 46 do RISTF vai ao encontro da finalidade pretendida pelo presidente do STF, que por óbvio é intimidar os críticos do Tribunal, que vem reiteradamente invadindo as competências dos demais Poderes – abrindo caminho, inclusive, para a aplicação do controvertido artigo 142 da Constituição. É flagrante o desvio de finalidade do referido inquérito-fake. Ocorre que o texto do artigo 46 do RISTF, que determina a comunicação ao Ministério Público, foi convenientemente esquecido e não foi por acaso. É que a sua simples existência anula por completo a finalidade que Dias Toffoli pretende conferir ao art. 43 (supondo, por hipótese, que esse artigo tivesse sido recepcionado pela Constituição de 1988, o que não é o caso).

Importante lembrar que a função de um regimento é tão somente, regulamentar assuntos internos da instituição, dispondo de aspectos específicos, alcançando as situações particulares vivenciadas pela organização, garantindo o correto desenvolvimento das atividades conforme as diretrizes anteriormente traçadas por ele. No caso do STF (e de qualquer tribunal), até as pedras dos rios sabem que só pode constar do regimento aquilo que foi delegado pela Constituição e pela Lei.

Não existe uma única linha na Constituição nem na Lei que tenha conferido poderes ao STF para agir com tamanha desfaçatez, adulterando o RISTF para poder instaurar inquérito sob o sistema inquisitorial.

Mas, repita-se, como há omissão e subserviência do Congresso Nacional, que não faz valer sua autoridade frente ao Judiciário (art. 49, inc. XI), contendo-o em seu ativismo judiciário, foi instaurado no Brasil o primeiro inquérito sob o sistema inquisitório após a Carta Magna de 1988. Tomás de Torquemada, da Santa Inquisição, coraria de vergonha, menos com o ato teratológico e ilegal do presidente do STF, mais com a passividade e acovardamento de instituições como o Legislativo, o Ministério Público, a OAB, a AGU, que inexistiam no Século XV.

No sistema inquisitório não há separação entre a pessoa com função de acusar e julgar, de modo que o próprio futuro juiz da causa tem poder para deflagrar a persecução penal, instaurando a investigação, investigar, acusar, e após julgar e preferencialmente, condenar. Em síntese é o que a Santa Inquisição fez, com base num “art. 43” da igreja, deliberado e decidido por eles próprios. No Inquérito 4781, caso prossiga, aguardem os autos-de-fé (por exemplo, condenações e prisões de deputados e senadores). Mas depois não reclamem, quando for tarde demais.

A previsão de um regimento interno para os tribunais, a ser elaborado pelo próprio Judiciário, encontra-se na Constituição, ressaltando-se que só pode constar do regimento interno o que foi delegado pela Constituição e pela Lei. Importante lembrar que o artigo 43 do RISTF foi inserido em 27.10.1980 (Diário de Justiça, pag. 8668) sob a égide da imprestável e inexistente Constituição de 1967, que nada previa sobre o sistema acusatório nem sobre as prerrogativas do Ministério Público (este constava em apenas três artigos de caráter geral - arts. 137 a 139).

A Constituição de 1967 trazia a seguinte redação em relação ao RISTF, no art. 110:

Art. 110. Compete aos Tribunais:
II - elaborar seus Regimentos internos e organizar os serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos na forma da lei;

Note-se que após a expressão “elaborar seus Regimentos internos”, o restante da frase direciona e delimita o objeto do RISTF (“organizar os serviços auxiliares”), que encontrará nas prerrogativas conferidas ao STF, na Constituição de 1967, outros elementos para integrar no RISTF.

Por sua vez, a Constituição de 1988 determinou o seguinte em relação ao RISTF, no art. 96:

Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

Perceba-se que, mais uma vez, o comando constitucional sobre o conteúdo do regimento interno refere-se a aspectos administrativos, de gestão, dos tribunais (“competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”), conteúdo esse que deverá estar em conformidade com as prerrogativas conferidas pelo Legislador ao STF, plasmadas no artigo 102. A LOMAN (Lei da Magistratura) traz mais algumas balizas para que os tribunais elaborem os seus regimentos internos, nos arts. 15, 21, 48, 67 § 3º, 76, 102, 104, 117, 120 e 134. Nem de longe a LOMAN autoriza a instauração de inquérito.

Importante lembrar que a Constituição também conferiu poderes para a Câmara dos Deputados e Senado Federal elaborarem seus regimentos internos, nestes termos:

Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
III - elaborar seu regimento interno;
IV - dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias;
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
XII - elaborar seu regimento interno;
XIII - dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias

Seria interessante conferir a posição do Judiciário, caso as duas Casas do Legislativo introduzissem um “art. 43” semelhante o do RISTF em seus regimentos. O art. 57, § 3º dispõe sobre o regimento interno do Congresso Nacional.

Ressalte-se que a Constituição de 1988 trouxe uma expressão relevante (e até desnecessária, ao nosso ver) no comando constitucional no art. 96, inc. I:

“com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes”.

Ou seja, ainda que possamos admitir, para o simples debate, uma suposta validade do art. 43 do RISTF para a finalidade teratológica que o presidente do STF, Dias Toffoli, pretende conferir (instauração de inquérito), mesmo sob a égide da Constituição de 1967, é por demais evidente que o art. 43 não foi recepcionado pela Constituição de 1988, sendo flagrantemente inconstitucional e ilegal por violar princípios, clausulas pétreas e normas legais. Citamos algumas:

A uma, art. 1º: a República Federativa do Brasil (…) constitui-se em Estado Democrático de Direito

A duas, art. 5º II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

A três, art. 5º, XXXVII: não haverá juízo ou tribunal de exceção;

A quatro, art. 5º, LIII: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; (principio do juiz natural)

A cinco, art. 5º, LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Tão importante quanto os comandos constitucionais anteriores, a Carta Magna de 1988, por sua vez, plasmou no art. 129 as funções institucionais do Ministério Público, em especial os incisos I e VIII e Parágrafo 2º (sistema acusatório):

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
§ 2º As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição.

O Código de Processo Penal prevê no art. 40 o seguinte:

Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”.

No sistema acusatório, há nítida separação entre o órgão com função de acusar (que pressupõe o poder instrumental de investigar, o Ministério Público) e a autoridade com competência para julgar (Judiciário).

Posto essas considerações e considerando a Constituição de 1988, percebe-se, cabalmente, que ao STF não foi conferida nenhuma prerrogativa para, sequer, manter a redação antiga do art. 43 do RISTF, quanto mais fazer um truque de prestidigitação e “forçar a barra” para o seu desvio de finalidade, instaurando um inquérito fake – o Inquérito 4781. Para conferir o desvio de finalidade ao art. 43 e usurpar as prerrogativas privativas do Legislador, o presidente do STF não teve o menor constrangimento em violar um principio constitucional (art. 1º, caput, Estado Democrático de Direito) e várias cláusulas pétreas, anteriormente citadas (além de ter ignorado a existência do art. 46, do RISTF).

Nos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior, nem mesmo o Legislador pode autorizar a criação de juízes ou tribunais de exceção ao Judiciário! Confira-se:

“só pode exercer a jurisdição aquele órgão a que a Constituição atribui o poder jurisdicional. Toda origem, expressa ou implícita, do poder jurisdicional só pode emanar da Constituição, de modo que não é dado ao legislador ordinário criar juízes ou tribunais de exceção, para julgamento de certas causas, nem tampouco dar aos organismos judiciários estruturação diversa daquela prevista na Lei Magna.” (Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento, 15ª edição, editora Forense, pág. 38)

Na ADI 1.105, tendo como relator o inesquecível ministro Paulo Brossard, foi decidido que em matéria processual prevalece o que dispõe a lei, no que for regulado pelos regimentos internos dos tribunais. Confira-se:

Aos tribunais compete elaborar seus regimentos internos, e neles dispor acerca de seu funcionamento e da ordem de seus serviços. Essa atribuição constitucional decorre de sua independência em relação aos Poderes Legislativo e Executivo. (...). Em relação à economia interna dos tribunais a lei é o seu regimento. O regimento interno dos tribunais é lei material. Na taxinomia das normas jurídicas o regimento interno dos tribunais se equipara à lei. A prevalência de uma ou de outro depende de matéria regulada, pois são normas de igual categoria. Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. Constituição, art. 5º, LIV e LV, e 96, I, a.

Na ADI 2.970, da relatoria da ministra Ellen Gracie, foi explicitado que os regimentos internos dos tribunais respeitem a reserva legal em seus conteúdos:

Com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, "dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos" (CF, art. 96, I, a). São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição. Ante a regra fundamental insculpida no art. 5º, LX, da Carta Magna, a publicidade se tornou pressuposto de validade não apenas do ato de julgamento do tribunal, mas da própria decisão que é tomada por esse órgão jurisdicional.

O art. 22, inc. I, citado pela ministra Ellen Gracie, prevê que “Compete privativamente à União legislar sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. Portanto, nenhum tribunal – incluindo o STF - pode fraudar a Constituição, atuando como Legislador e inovando em seus regimentos internos, colocando neles disposições e normas que não lhes foram conferidas.

A questão da abolição do sistema inquisitório no ordenamento jurídico brasileiro é tão séria que em 2004 o STF extirpou do nosso sistema a função do juiz investigador ou inquisidor, quando na ADI 1570/DF (relatoria do ministro Maurício Corrêa) declarou inconstitucional o art. 3º da Lei 9.034/1995, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas:

Funções de investigador e inquisitor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Policia Federal e Civil (artigo. 129, I e VIII e parágrafo 2º; e 144, § 1º , I e IV, e § 4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à Polícia.

A maior das tragédias nem chega a ser o avanço, por demais explícito, do Judiciário sobre os demais Poderes. Virou deboche e escárnio. Para nossa perplexidade, tomamos conhecimento que outro ministro do STF – virou farra! – tomou decisão inacreditável, determinando ao Governo do Rio de Janeiro a não realização de operações policiais em comunidades daquele estado, durante o período da pandemia. Resta saber se o mesmo ministro mandou intimar todos os bandidos do Rio de janeiro, “para que se abstenham da prática de atos criminosos”.

Pergunta: o referido ministro será responsabilizado pelas consequências óbvias de sua decisão?

A tragédia maior é que tem a competência constitucional para conter e frear o Judiciário é o Legislativo que, por sua vez, se omite, não aplicando o disposto no art. 49, XI, da CF/88:

Compete privativamente ao Congresso Nacional zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes.

No caso, cabe ao Congresso Nacional sustar os atos – todos os atos – do STF que implicarem em violação da Constituição e avanço nas prerrogativas dos demais Poderes, por meio de decreto legislativo. A propósito, os regimentos internos da Câmara dos Deputados, Senado Federal e Congresso Nacional são omissos quanto à efetividade do art. 49, XI. Já passou da hora de regulamentar essa matéria.

Por sua vez, o presidente do Senado se acovarda, não dando seguimento aos processos contra ministros do STF.

Enquanto o Poder (Legislativo) for subserviente ao Poder (Judiciário), o STF agirá como um Supremo Tribunal Fakeral.

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