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Tornou-se o STF o novo ‘poder moderador’?

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Contrariando os argumentos robustos de um dos mais importantes Professores e juristas brasileiros, Ives Gandra da Silva Martins, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em decisão liminar (atendendo a um pedido do PDT) do ministro Luiz Fux, que a ‘Constituição da República Federativa do Brasil’ não permitiria ao Presidente da República invocar as Forças Armadas para conter os avanços dos demais poderes (legislativo e judiciário) sobre a autonomia do poder executivo.

Noutros termos, as Forças Armadas não poderão ser moderadoras em conflitos entre os três poderes.

Diferentemente do que encontramos no artigo do Professor Gandra Martins (“Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”, ‘ Consultor Jurídico’, 28 de maio de 2020), não veremos na decisão proferida pelo STF a mesma robustez argumentativa e, mesmo, intelectual daquele que é, insisto, um dos mais notáveis e relevantes juristas brasileiros.

Diferentemente do que ocorrerá com nossos atuais ministros do STF, os quais cairão em absoluto esquecimento assim que se aposentarem (notaram que nós nos apercebemos de sua existência unicamente quando eles aparecem na mídia?), o Professor Gandra Martins certamente será objeto de estudos pelas próximas gerações.

Esse é um ponto que, parece-me, deve ser levado em conta: ele já possui um legado intelectual e moral. Além disso, é preciso que fique claro que o STF não é a última palavra porque é infalível: ele assume uma infalibilidade dogmática porque é a última palavra. Assim como nossas universidades são, hoje, ensino “superior” apenas no título, o mesmo pode ser considerado, penso, sobre a ideia de um “supremo” tribunal. A meu ver “supremo”, aqui, significa apenas última instância, não necessariamente superioridade intelectual ou, mesmo, moral.

Em uma sociedade democrática suas decisões devem, sim, poder ser objeto de contestação baseada em argumentos, dados, etc. Ou seja, elas não são infalíveis e deveriam ser passíveis de eventual revisão, tal como ocorre em outras democracias constitucionais.

Mas voltando ao ponto referente à recente decisão, enquanto o Professor Gandra Martins argumenta solidamente a partir da ‘Constituição da República Federativa do Brasil’ mesma, e, claro, de excelentes argumentos oriundos de sua erudição e experiência no desenvolvimento de nossa Constituição mesma, a decisão proferida pelo STF realmente não me parece objetiva, representando mais nosso atual contexto confuso de ativismo e insegurança judiciais do que a tão evocada “supremacia da constituição sobre todos os cidadãos”.

Com efeito, é evidente uma constante e crescente tensão entre os poderes, especialmente dos poderes legislativo e judiciário contra o poder executivo.

Mesmo o senso comum já deve ter se apercebido que a tão estimada separação entre os poderes, sistematizada especialmente por Montesquieu (1689-1755), tem sido violada em ações que tolhem do poder executivo sua autonomia (a qual é assegurada constitucionalmente, aliás) e algumas de suas prerrogativas.

Recentemente, mesmo seu poder de estipular medidas provisórias foi, a meu ver, violado, por exemplo, com a “devolução”, pelo presidente do senado, da MP 979/20 para o Presidente Bolsonaro, a qual tratava de uma questão urgente, a saber, da nomeação, pelo MEC, de reitores pro tempore para as universidades federais durante a emergência causada pela pandemia.

Sem falar nas diversas iniciativas notáveis e auspiciosas para o Brasil que estão sendo deixadas, intencionalmente, para “caducar” no congresso, e isso com um propósito com consequências perniciosas para o Brasil, qual seja, a desestabilização e ingovernabilidade do poder executivo.

Segundo vejo, nosso presidente está sendo cerceado e acossado seja pelos poderes legislativo e judiciário seja pelo “quarto poder”, a saber, pela grande mídia.

Esses três poderes têm escancaradamente atuado como forças dessimétricas, o que explica nosso atual contexto de caos institucional.

Uma breve observação dos recentes acontecimentos deixará isso evidenciado.

Em minha opinião, as recentes investidas do STF contra a liberdade de expressão e imprensa (pilares de uma sociedade democrática), voltadas, aliás, exclusivamente contra indivíduos e grupos correligionários do presidente Bolsonaro, escancara o óbvio: o objetivo de silenciar todo aquele que expresse apoio ao poder executivo.

E para isso usam de diversos expedientes que, segundo juristas, violam manifestamente a ‘Constituição da República Federativa do Brasil’.

Ou seja, aqueles mesmos que enaltecem a “supremacia da constituição sobre todos os cidadãos” criaram a figura do “cidadão de segunda classe”, a saber, daquele indivíduo cujas opiniões divergem dos três poderes cerceadores do poder executivo. Para o “cidadão de segunda classe” não valem as prerrogativas da lei, como podemos observar a partir dos recentes testemunhos de indivíduos (alguns deles jornalistas) que tiveram suas vidas, sua propriedade e seus direitos usurpados por manifestarem suas opiniões publicamente.

Mas o fato é que estamos, sim, diante de uma intervenção dos demais poderes sobre o poder executivo. Se não fosse assim sequer estaríamos discutindo o artigo 142 da Constituição, segundo o qual “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Ou seja: cabe às Forças Armadas garantir os “poderes constitucionais” e a “lei e a ordem”.

Isso, parece-me, significa dizer que as Forças Armadas deveriam assegurar a governabilidade do poder executivo, bem como a lei e a ordem, ou seja, que ninguém terá, por exemplo, seus direitos fundamentais e autonomia violados.

Trata-se de termos “freios e contrapesos” (‘Checks and Balances’) para evitar que um poder se sobreponha ao outro e coloque em risco a democracia mesma.

Um dos founding fathers dos USA, James Madison (1751-1836), no clássico artigo “The Structure of the Government Must Furnish the Proper Checks and Balances Between the Different Departments" (‘Federalist No. 51’), já apontava para a importância de cada poder ter “freios” e “contrapesos” para evitar a danosa interferência sobre os demais.

Parece-me que hoje, talvez mais do que nunca desde a redemocratização do Brasil, carecemos de uma interferência que assegure esses pesos e contrapesos.

Embora eles sejam garantidos constitucionalmente, a mera lei não tem força sozinha. Sua força vem de instituições. Nesse caso, sua força moderadora deveria vir das Forças Armadas.

Creio que cabe a elas assegurar que não teremos outra ditadura. Insisto: a Constituição, tomada isoladamente, é apenas um livro. É preciso que instituições assegurem sua aplicabilidade e força coercitiva. Nesse sentido, a quem um dos poderes deveria recorrer se tolhido em sua autonomia? Ora, às Forças Armadas.

Em acordo com o artigo do Professor Gandra Martins, julgo, então, que essa interferência deve ocorrer a partir de uma urgente ação das Forças Armadas, as quais, a meu ver, também têm sido denegridas pelos demais poderes, especialmente pelo judiciário.

Aqui recordo da decisão do ministro Celso de Mello, responsável pela apuração das ilações maledicentes do ex-herói nacional Sergio Moro.

Em uma decisão no mínimo desrespeitosa ele determinou que fossem ouvidos, como testemunhas, os ministros, general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, general Walter Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, e general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo.

A parte desrespeitosa vem com o despacho, em que lemos que “se as testemunhas que dispõem da prerrogativa fundada no art. 221 do CPP, deixarem de comparecer, sem justa causa, na data por elas previamente ajustada com a autoridade policial federal, perderão tal prerrogativa e, redesignada nova data para seu comparecimento em até 05 (cinco) dias úteis, estarão sujeitas, como qualquer cidadão, não importando o grau hierárquico que ostentem no âmbito da República, à condução coercitiva ou debaixo de vara”.

Tal despacho foi objeto de imediata nota de repúdio do ‘Clube Militar’. No entanto, a dano já estava feito. Já havia ocorrido uma rusga desnecessária entre judiciário e Forças Armadas. Digo desnecessária porque caberia a um ministro do STF aquilo que Aristóteles denominou de ‘phronesis’, ou seja, sabedoria prática. Deveria ser inerente à atividade judicial essa sabedoria.

Ou seja, não seria suficiente conhecimento jurídico apenas, mas a ele deveria estar associada visceralmente a ‘phronesis’, a mesma sabedoria que nos impede, aliás, de acusar milhões de brasileiros de “nazistas” (como o fez o mesmo ministro em mensagem vazada para a mídia).

Com efeito, parece-me que essa rusga agravou-se com a recente decisão do ministro Luiz Fux sobre o artigo 142 da Constituição, em que ele nega às Forças Armadas uma prerrogativa anterior à própria Constituição de 1988.

Assim, resta a questão: quem terá o poder moderador de agora em diante?

Penso que essa questão tem uma resposta inequívoca, a saber: O STF tomou para si essa autoridade.

A impressão que temos, dados os últimos acontecimentos, é que o STF se tornou um poder acima da Constituição mesma e dos demais poderes.

Estamos em uma assustadora situação em que nos perguntamos, com o poeta romano Juvenal, “Quis custodiet ipsos custodes?”. Ou seja: “quem vigia os vigilantes?”

Nesse sentido, quando um poder deixa de ser meramente “moderador” e passa a assumir as atribuições de outros poderes, o que temos já não é democracia, mas uma espécie de ditadura, um novo tipo de ditadura, a qual tem sido denominada por muitos analistas de ‘ditadura togada’.

E aqui lembremos-nos das sábias palavras do polímata (que se destacou em inúmeras áreas, inclusive como jurista) Rui Barbosa (1849-1923), segundo o qual “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.

Sim, nesse momento já não podemos recorrer sequer às Forças Armadas, as quais tiveram, na recente decisão liminar, tolhidas suas atribuições na garantia dos pressupostos democráticos sem os quais nossas liberdades individuais (e a autonomia dos demais poderes) são apenas palavras débeis em um livro.

Carlos Adriano Ferraz. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito. Também é membro do movimento Docentes pela Liberdade (DPL), sendo atualmente Diretor do DPL/RS.

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