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A opinião de quem trabalha há 27 anos na sede na ONU: Se a Gente Acabasse com a ONU, o Mundo Ficaria Melhor?

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Quando tive a honra e o privilégio de me encontrar com o Dr. Deltan Dallagnol em Curitiba, ele comentou que a menção da ONU em sua página sempre gerava controvérsias.

Trabalho na sede da ONU em Nova York há mais de 27 anos. Como especialista em gestão pública, fui convidado a visitar mais de 85 países para tentar melhorar a forma como seus governos funcionam.

Depois de crescer vendo meu próprio país ser roubado durante tanto tempo, apoio fortemente a Operação Lava Jato, como a maioria dos brasileiros. Nunca pensei que veria políticos corruptos e milionários sendo presos. Gosto das medidas contra corrupção do atual Governo.

Espero que escândalos como mensalões, petrolões, rombos em fundos de pensão, no BNDES, nas Estatais, etc. fiquem no passado. Transparência na administração pública é um caminho correto para o desenvolvimento.

Somos a nona economia mundial, mas no recente Relatório de Governo Digital da ONU, por exemplo, ainda estamos na 54ª posição. Podemos melhorar.

O Brasil está estranhamente polarizado. Até remédios para tratamento de COVID-19 possuem coloração político-partidária. Enquanto políticos corruptos na esfera estadual e municipal usaram a pandemia para roubar, alguns criticam o Presidente por tomar comprimidos de cloroquina. Se alguém é contra um comprimido que não o tome. A questão não é direita X esquerda. São estertores de corruptos plutocratas reagindo contra um país inteiro que quer se desenvolver de forma mais ética e transparente.

Aparentemente aqueles que se colocam a favor do Governo se sentem na obrigação de criticar a ONU ou de elaborar fantasias mirabolantes sobre seus objetivos.

É importante esclarecer que não escrevo isso para defender meu emprego. Se fecharem a ONU amanhã, acho que não terei problemas para encontrar trabalho em vários países. Escrevo isso para que os brasileiros entendam um pouco melhor como criticar aqueles que se utilizam da ONU de forma errada para suas agendas políticas. Eles existem e são muitos.

O fato é que há no Brasil um grande desentendimento sobre a missão, funções e o propósito da ONU. Há razões para isso. Por isso acho muito importante, em primeiro lugar, separarmos a instituição ONU das pessoas que a utilizam para determinados fins. Em um exemplo histórico, quando Che Guevara subiu ao pódio da Assembleia Geral para dizer que fuzilava os inimigos de sua revolução ele prestou um grande desserviço aos objetivos de paz e imparcialidade da ONU.

Em segundo lugar, as pessoas confundem a ONU como instituição com as posições de seus países membros. São 193 países membros soberanos. A noção de soberania é medieval. O soberano podia deflorar as moças virgens de seu feudo, por exemplo. Hoje isso não acontece mais, mas a noção de soberania ainda existe. Em 2009, o ex-ditador da Líbia, Muammar Al-Qadhafi foi convidado para fazer um discurso de 5 minutos na Assembleia Geral da ONU. Ele falou por 96 minutos porque ninguém tinha autoridade para pedir que se calasse. A mesma coisa aconteceu quando Fidel Castro falou por 269 minutos (mais de 4 horas!) em 1960. Quem diz que a ONU quer implantar um “governo global” não tem a menor ideia que os primeiros inimigos desse tipo de globalização seriam os próprios países membros e seus poderosos líderes.

Em terceiro lugar: esses líderes discordam o tempo todo e isso não é culpa da ONU como instituição. A ONU não inventou a geopolítica internacional, mas precisa operar segundo suas regras.

Vamos lembrar que a ONU foi criada em 1945 depois de duas sangrentas guerras mundiais. Desde a sua criação, refletindo a geopolítica mundial de 1945, o Conselho de Segurança da ONU foi formado por dois países comunistas (China e União Soviética, hoje Rússia) e três democracias ocidentais (EUA, França e Grã-Bretanha). Em 2020, a questão não é apenas direita X esquerda, mas ferozes disputas por mercados e esferas de influência.

Cada país membro é soberano e o Secretariado da ONU não pode questionar isso.

O fato é que não existe no planeta nenhum outro Fórum para discutir questões globais. Se a ONU não existisse, ela precisaria ser inventada.

Em conclusão, por que precisamos de um Fórum Global? Se você nunca deu um telefonema internacional, nunca enviou uma carta ou um e-mail a outro país, nunca fez uma viagem internacional de navio ou avião, nunca recebeu uma transmissão via satélite de um programa de TV, nunca usou um GPS, nunca fez uma transferência bancária nacional ou internacional, nunca consumiu nenhum produto importado, etc. é possível que você ache tudo isso irrelevante.

Além de discutir todos os acordos e protocolos internacionais, a ONU ainda cuida de manutenção da paz a pedido de seus países membros e envia remédios, alimentos e ajuda humanitária depois de terremotos, enchentes e tsunamis.

No início da Segunda Guerra Mundial a Alemanha nazista invadiu e dominou a Dinamarca em apenas seis horas enquanto o mundo assistia atônito. Hoje em dia, a Costa Rica pode existir sem um exército, o Reino do Butão pode exercer sua paz budista sem ser incomodado, o conflito de fronteira entre Guiana e Venezuela é discutido na Corte Internacional. Desde 1966, O Conselho de Segurança da ONU já estabeleceu mais de 30 sanções contra Angola, Coréia do Norte, Iran, Líbia, e também Al-Qaida e Taliban, entre outros.

Além disso, a ONU também gerencia o sistema estatístico mundial, publica relatórios anuais sobre desenvolvimento econômico e social, monitora o uso de tecnologias digitais para melhoria de governos e serviços públicos, defende a transparência nos governos através de parcerias internacionais, promove cooperação técnica entre países membros, elabora estudos sobre políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento, monitora o uso do espaço para fins pacíficos, elabora protocolos sobre lixo espacial e lançamento de satélites, entre outras solicitações de seus países membros.

Acho importante que os brasileiros continuem criticando a ONU. Não necessariamente pedindo a sua extinção sem entender as suas atividades, mas cobrando mais objetividade e imparcialidade daqueles que distorcem a missão da ONU para atingir seus objetivos.

Jonas Rabinovitch. Arquiteto urbanista e Conselheiro Sênior da ONU para assuntos de inovação e gestão pública. Nota do autor: A visão expressa nesse artigo é do autor e não representa nenhuma opinião por parte das Nações Unidas ou de seus membros.

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