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A guerra brasileira

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Ilude-se quem pensa que a grande disputa no Brasil, neste início de milênio, é entre “direita” e “esquerda”; ou entre “conservadores” e “progressistas” – muito menos entre “capitalismo” e “socialismo”. Pura miragem. A guerra que está em curso – e por poucos ainda decifrada – é entre corporativismo clepto-oligárquico (de um lado) e republicanismo democrático (de outro).

A primeira força representa interesses de raízes seculares, ancorados no poder corporativo de algumas elites (empresariais, sindicais, profissionais e partidárias), cujo objetivo é a manutenção do status quo, da atual ordem social e política estamental por meio do controle “privado” do Estado, excludente da maioria da população e garantidora de vantagens e privilégios para poucos; a segunda, expressa a ação de indivíduos e grupos focados na construção de uma ordem política alternativa, mais comprometida com o interesse geral da sociedade (e não das corporações), com a gestão transparente e republicana do Estado e com o alargamento do espaço público de participação política, em sintonia com a vontade expressa da maioria dos cidadãos.

O estamento corporativo-oligárquico se acha instalado e ramificado em todas as instâncias dos órgãos estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em instituições da sociedade civil, como os meios de comunicação, os partidos políticos e as organizações sindicais e profissionais, seja de natureza pública ou privada. Os protagonistas do projeto republicano-democrático, da mesma forma, encontram-se alojados tanto nos escaninhos do poder público, quanto em organizações civis das mais diversas feições, compondo-se, a partir dessas coordenadas, a cartografia dos “exércitos” em conflito.

O primeiro “batalhão”, pela força da tradição, detém mais poder (político e financeiro) e maior controle dos aparelhos de Estado, o que lhe garante, em princípio, grande capacidade de resistência e relevante munição para reação aos ataques. O segundo, por representar, até o momento, uma força em ascensão, carece, ainda, de maior solidez e poder – não obstante as significativas vitórias já obtidas no front –, esgrimindo a sua luta nos poros do tecido social e estatal por meio da articulação de atores descontentes com a situação vigente e, sobretudo, pela obtenção de apoio popular, em evolutivo crescimento.

Os principais campos de batalha são as arenas do Estado – em todos os níveis e instâncias – e dos meios de comunicação – incluídas as redes sociais. Os avanços e recuos na ocupação dessas “trincheiras” vão demarcando a correlação de forças e as tendências dessa “guerra de posições” a cada conjuntura – mutante a cada dia e hora pela força dos acontecimentos e das ações e reações decorrentes.

Nesta guerra em aberto e de difícil prognóstico, os polos opostos – como dito na introdução – não se alinham por clivagem “ideológica”. Assim é que, ante o inimigo comum, setores da ”esquerda” e da “direita” se unem taticamente para defender as suas posições cativas na tradicional partilha dos benefícios do poder estamental, postergando as desavenças internas para embates futuros – e secundários. Na essência, não há diferenças entre aliados do mesmo grupo. Os “antagonismos ideológicos” não passam de um jogo de aparências, programado para ludibriar e entreter, como num palco de circo, as plateias mais ingênuas e desatentas. Os casos do Mensalão, de um lado, e da Lava Jato, de outro – que descortinou os bastidores da encenação –, são, certamente, alguns dos exemplos recentes mais ilustrativos.

Dentre os alvos mais visados pelos contendores, encontra-se aquele do convencimento das massas, da formação da opinião pública. Pois é pela força do argumento que se mobiliza (ou anestesia) o povo a assumir (ou não), pela pressão (ou omissão) das ruas, papel ativo (ou passivo) no campo de batalha. Não ao acaso, nesse belicoso cenário, recrudescem as contendas e choques de informações, versões e visões sobre fatos e fakes, na busca incessante, pelos competidores, de arregimentação do maior número possível de “alistamentos” e adesões. No espaço em conflagração, impera o vale-tudo: acusações, calúnias, fake news, denúncias, crime, corrupção – e até espionagem (com apoio sofisticado de tentáculos internacionais). Visa-se, ao fim e ao cabo, à hegemonia – a conquista de corações e mentes –, sem o que não existe possibilidade de direção e liderança da sociedade.

É nesse contexto – e em razão de – que emergem as “hermenêuticas” de guerra. Interpretações padronizadas que visam a alimentar e nortear as tropas em conflito, conferindo sentido e delineamento estratégico aos embates travados no front, conforme premissas e interesses antagônicos. Dentre os formuladores das “teses” (pró ou contra), à la “intelectuais orgânicos”, sobressaem acadêmicos, artistas, analistas, articulistas, comunicadores, políticos e, mesmo, magistrados de plantão (incluídos juízes e ministros das altas Cortes), comprometidos com a “causa” de um dos lados em disputa. Da mesma forma, revelam-se as principais trincheiras do embate, com colorações próprias e funcionais (ainda que permeadas por tensões internas inerentes ao clima de conflagração): jornais, revistas, canais de comunicação (rádio e televisão), redes sociais, sites, blogs, tribunais, salas de aula, etc. E porque é guerra – de verdade! –, tudo (e todos) assume(m) o seu posto no confronto, empunhando as armas que lhes são possíveis.

São inúmeros os exemplos da “guerra hermenêutica” em curso, nas várias latitudes e longitudes do território em conflito. O caso da prisão em segunda instância talvez seja o mais icônico e ilustrativo dentre todos – além de revelador e pedagógico.

Fato é que, nesse ambiente de hostilidades, presencial ou virtual, feito de tribunais e telas, pronunciamentos e escritos, não há isenção. Inexiste neutralidade. Tampouco diplomacia. Os objetivos em disputa são, por natureza, inconciliáveis. Todas as “armas” disponíveis são empunhadas. Os fins passam a justificar os meios. O que conta é desqualificar e desmoralizar o adversário. Os competidores mais perigosos são os que se camuflam de imparcialidade. Os “mornos”, na colisão dos contraditórios, serão “vomitados” pela história. Alea jacta est.

O resultado final (se é que há “final”!), somente o futuro dirá. Dependerá da evolução da correlação de forças em disputa. Em grande medida, do povo nas ruas.

Enquanto isso, em meio a projéteis de todos os calibres, apontados em todas as direções, não custa nada “se armar” da letra de Vossa Excelência, da banda de rock Titãs, aderindo e apostando (por que não?) na munição de seus versos:

“Estão nas mangas dos senhores ministros / Nas capas dos senhores magistrados / Nas golas dos senhores deputados / Nos fundilhos dos senhores vereadores / Nas perucas dos senhores senadores (...) Senhores, senhores, senhores / Minha senhora! / Bandido! Corrupto! / Senhores, senhores / Filho da puta! Bandidos! / Corrupto! Ladrão! Senhores! (...) Um dia o sol vai nascer quadrado / Estamos preparando vossas acomodações, Excelências (...) Bandido! Corrupto! Ladrão”.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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