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Grandes estrelas, grandes tragédias

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“Os artistas são as antenas da raça”. (Ezra Pound – Abc da Literatura- pag. 77).

Alguns artistas nascem sobre a face da terra enviados pelos deuses. Mas quando começam a distribuir belezas, entrelaçar sentimentos, mostrando aos terráqueos novas emoções, desvelando o desconhecido, intuitivamente, os deuses parecem ficar enciumados e os levam cedo demais para criar e cantar somente para eles.

São pássaros de um único verão e nos fazem ver aquilo que não víamos, ouvir o que não ouvíamos, sentir o que não sentíamos. Suas mensagens vêm em forma de livros, pinturas, danças, cantos. Revelam para humanidade o desconhecido. Desbravam suas entranhas. Aparecem e tornam a humanidade mais feliz.

Marilia surge para o Brasil como uma artista sem modelos prévios, sem figurinos imaginados pelo mundo da internet, sem padrões determinados pelas telas das tevês, sem uma melancia no pescoço, sem turbantes mirabolantes, roupas berrantes ou seminua, não aparece rebolando de forma ensandecida para um público ávido de novidades.

Não. Marília emerge crua e canta para uma Brasil admirado com seu timbre de voz grave, que é chamado na música de “contralto”:

“Isso não é uma disputa / Eu não quero te provocar
Descobri faz um ano e tô te procurando pra dizer
Hoje a farsa vai acabar”. (Infiel).

Em 1951, a cantora Linda Batista, também chocou o Brasil ao cantar, em uma época onde as mulheres eram educadas para casar e serem obedientes, quase sempre proibidas de expressar o que sentiam:

“Mas enquanto houver força em meu peito / Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar
Você há de rolar como as pedras / Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu / Pra poder descansar”. (Vingança).

Em 1973, aparece Milton Carlos, com sua voz de “contratenor”, segundo o pesquisador Bruno Negromonte, “a voz de Milton não era falsete. Era uma voz ímpar, bastante peculiar porque continha, além da beleza esfuziante, uma evidente androginia”. Milton não estava preocupado com isso, sua voz era um dom natural e também cantou para um Brasil extasiado:

“Eu fiz do ontem o hoje e do hoje o amanhã
Pra te ver aqui, mas é bem melhor
Para o mundo eu chorar, pra você eu mentir”. (Samba Quadrado).

Marilia nunca se preocupou com movimentos, com ideologias, com feminismo. Sua grande sacada foi a igualdade entre as pessoas: homem/mulher. O homem em casa era o patrão. Ponto. Mandava, mas fora de casa tinha alguém que também nele mandava: outro patrão. Mas a mulher também tinha um outro tipo de patrão: a patroa. Sim, os dois, homem/mulher – patrão/patroa. Então a noite das patroas. A noite daquelas que não tinham em quem mandar, que não se transformavam em princesas, mas em patroas. Não esperavam um príncipe encantado, mandavam na noite.

Perguntada por jornalistas de uma revista feminista se tinha sofrido preconceito por não ser magra, respondeu: - "Eu não estou nem aí. Sou feliz e quero, sim, que as pessoas me vejam como exemplo. Se um dia resolver emagrecer, será por vontade própria e não porque faz bem para minha imagem".

Sua segunda sacada nesta caminhada de igualdade foi o fato de que o homem amado traia com a outra, uma igual, uma que também tentava ser patroa. Era mais forte fisicamente, mas não moralmente. Como atingi-lo? Claro, em seu ponto fraco: um chifre! Às vezes nele, às vezes nela, a outra. Uma espécie de relacionamento onde sempre haveria revide, revide necessário para equilibrar a convivência. Não chorando, mas vingando-se na mesma moeda. Chifre por chifre, cada um levava o seu:

“O seu prêmio que não vale nada, estou te entregando
Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando
Essa competição por amor só serviu pra me machucar
Tá na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor
Me faça esse favor”. (Infiel).

Em 17 de abril de 1988, vítima de embolia pulmonar, aos 68 anos, Linda Batista faleceu. — "Ôba!" — Era seu grito de guerra e entrava no palco para deliciar seus fãs com sucessos. “Tinha uma personalidade carismática, temperamental e excêntrica”. Os Deuses nunca perdoaram o fato de Linda Batista preferir cantar para os humanos e não para os deuses.

“Linda morreu de tristeza, abandonada e na miséria”. (Marlene – cantora).

Em 21 de outubro de 1976, Milton Carlos viajava de Jundiaí para São Paulo em companhia de sua noiva, a também cantora Mariney Lima e do empresário Genildo de Oliveira. O Passat do cantor tentou ultrapassar uma carreta em um trecho da via Anhanguera e bateu em um caminhão. Com o choque, o carro do cantor desgovernou-se e foi colhido pela carreta. Milton Carlos e sua noiva morreram na hora.

Tinha apenas 22 anos incompletos.

No dia 5 de novembro de 2021, Marilia Mendonça entrou em um táxi aéreo, em Goiânia, junto de seu produtor Henrique Ribeiro e de seu tio e também assessor Abicieli Silveira Dias Filho, com destino a Caratinga, interior de Minas Gerais, onde faria uma apresentação. O avião caiu, horas depois, na zona rural de “Piedade de Caratinga. Todos faleceram.

Tinha 26 anos completos.

“E quando se der conta já passou / Quando olhar pra trás já fui embora”.
(Eu sei de cor – Marília Mendonça).
Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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