“Esquerda” e “direita” fora do lugar: Caducaram as antigas demarcações

12/01/2022 às 06:17 Ler na área do assinante

O historiador israelense Yuval Harari, com a devida agudeza, notou que, hoje, só existe uma civilização no mundo.

Não obstante as diferenças e singularidades linguísticas, de tradições culturais e de crenças entre povos e nações, o planeta por inteiro se apresenta entrelaçado até as últimas entranhas de seu cotidiano pelos mesmos padrões tecnológicos de interação e comunicação, de produção e troca, cuja natureza sociológica pode ser comparada a uma imensa rede de complexa tessitura, atada a inexoráveis interdependências transnacionais, anunciando uma nova era na história da humanidade.

A era do globalismo se impõe, everyway and everywhere, como um fato avassalador, de inescapável coerção social.

Vive-se num outro patamar civilizatório, de totalidade social empiricamente universal (ainda que contraditória e multifacetada), já outrora percebido por argutos intelectuais do passado, como Karl Marx – usualmente desconhecido de seus apologetas –, que um dia escreveu que a indústria e o comércio (já no século XIX) haviam criado as condições materiais de um novo mundo, da mesma forma que as revoluções geológicas criaram a superfície da terra; e que, em consequência, a humanidade teria ingressado, em definitivo, no capítulo efetivamente mundial (e não mais local) de sua história, de relações empiricamente universais, contexto em que os interesses dominantes passam a ser os mesmos em todas as nações – condenada, nesse cenário, a própria “nacionalidade”(!).

Neste “admirável mundo novo”, o “choque de civilizações” (cristianismo x islamismo) ou as “antinomias ideológicas” (esquerda x direita) passam a ficar subsumidos a uma outra dinâmica societária, de fluxo, “desencaixes” e “reencaixes” de outra natureza – mais transversal e de impacto global –, em que a escala e o dinamismo dos desafios já não cabem nos estanques e mofados receituários ideológicos, exigindo soluções mais pragmáticas e sustentáveis para as reais e objetivas carências humanas – qualidade de vida, eficácia dos serviços públicos, garantia e igualdade de direitos e de oportunidades, respeito às diferenças, responsabilidade ambiental, etc. –, em sintonia com os destinos civilizatórios.

Ser de “direita” ou de “esquerda”, portanto, nesse contexto, torna-se absolutamente secundário ante a demonstração de maior ou menor capacidade de inovação e de compromisso, dos agentes políticos, em satisfazer, na prática (não mais no discurso), as demandas efetivas, republicanas e universais de interesse público. É a eficiência – e não a retórica (ou a ladainha) – o que passa a contar.

Caducaram as antigas demarcações. Borraram-se as estáticas fronteiras. Implodiram as binárias e dicotômicas narrativas. Na moldura desse diâmetro mais alargado da vida social, ainda em plena irrupção, não mais adianta negar o capitalismo, aos moldes do passado, sob acusações de conteúdo meramente moral ou por denúncias de viés fundamentalista (os chineses já perceberam isso desde Deng Xiaoping).

A sociedade de mercado, enquanto processo histórico de longa duração, até agora em plena expansão e consolidação, constituída à revelia da intencionalidade dos atores individuais em cena, não será extinta por decreto, nem por contestações estudantis, nem por “revoluções bolivarianas”, ao sabor dos lunáticos de plantão. Como o próprio Marx já percebera com extrema lucidez, desde 1858, numa carta a Engels:

“[se] a tarefa específica da sociedade burguesa é o estabelecimento do mercado mundial (...) uma vez que o mundo é redondo (...) a questão difícil, para nós, é esta: a revolução [no continente europeu] não estará destinada a ser massacrada neste pequeno canto [do planeta], considerando-se que, num território muito mais vasto, o movimento da sociedade burguesa ainda está em plena ascensão?”

Sim, a globalização não é uma ilusão ou uma invenção mental. É um fato. E como tal precisa ser compreendida e assimilada. Sem miopias ideológicas.

O ritmo, o volume e a composição dos processos sociais em curso, mixados num alto grau de interdependência, renovam-se em escala gigantesca, planetária, sob influência de uma “medula civilizatória” de outra natureza e envergadura, distinta daquela do passado, e que inaugura uma inédita “genética societária”, com sua dialética de “transmutação celular” própria.

Nesse enredado tecido sistêmico, de DNA móvel e flexível, tudo que é sólido se liquefaz. Metamorfoseiam-se valores, crenças e costumes – com impactos incessantes sobre formas e conteúdo da vida social. Remodelam-se visões de mundo, prioridades temáticas, hermenêuticas da existência. Cai na obsolescência a pretérita semântica que, nascida na Revolução Francesa, separava, em campos opostos, “direita” e “esquerda”. E isso por uma razão contextual e objetiva: o simples “credo”, com seus dogmas e relicários, já não garante, de per se (se é que algum dia garantiu!), eficiência e serventia ante o jogo incontrolável e oscilante das demandas sociais que emergem nessa gigantesca complexidade que se move.

“Liberalismo” e “socialismo”, depois de toda a experiência histórica acumulada ao longo dos últimos séculos, implodiram como teoremas absolutos e irreconciliáveis, deixando às claras, pela força da empiria das experiências legadas, as suas fragilidades axiomáticas.

“Liberdade” e igualdade” (de direitos e de oportunidades) – da mesma forma que o clássico (e falso) antagonismo entre mercado e Estado – não podem mais ser considerados princípios ou vias excludentes entre facções antípodas – como se supunha no passado –, mas valores e instâncias complementares e universais, conquistados no (e exigidos pelo) atual estágio civilizatório.

Ainda que as noções de “esquerda” e “direita” permaneçam coladas no imaginário e na linguagem da vida cotidiana hodierna, conferindo, por suposto, alguma identidade aos atores políticos na busca e afirmação de seus projetos e utopias, na verdade traduzem – na ausência de outros referenciais de ficção – resquícios de um passado que já não respondem (nem correspondem) às exigências mais dinâmicas e flexíveis da presente contemporaneidade.

Ser “conservador” ou “progressista”, “liberal” ou “socialista” não mais garante, na prática, por mera rigidez de alinhamento confessional, a solução para o drama – nada ideológico! – do desemprego estrutural, da crise fiscal do Estado ou da capacitação cognitiva e competitiva da sociedade, cujas soluções dependem, cada vez mais, de desenvolvimento tecnológico, de educação de qualidade (afinada com os desafios do futuro) e de inovação permanente – além de uma relação inteligente e lúcida dos protagonistas de cada local com o conjunto mais alargado do sistema, cuja dinâmica não reverbera pruridos estéreis, muito menos prescrições dogmáticas.

Prescreveram as fórmulas. Perderam validade os “receituários”. Não há mais lugar para catecismos. Ante um mundo que se move loucamente e sem rumo definido, erodindo regras e doutrinas, as ideologias estanques perderam sentido. Envelheceram. Extraviaram-se, na esteira dos escombros legados, da originária linfa da utopia. No seu fundamentalismo, viraram farsa. Quimera. E seus radicais adeptos, hoje, de qualquer tendência (à “direita” ou à “esquerda”), já não passam de ornitorrincos perdidos no meio da evolução, ainda iludidos por falsas e frustradas profecias, alimentadas por alguns erráticos sobreviventes, irresponsáveis e farsantes semeadores de ilusão.

Não serão os pretensos demiurgos da história que, com suas astuciosas promessas e alucinações, conduzirão a humanidade ao “paraíso terrestre”. Não adiantam slogans, palavras-de-ordem ou clichês ideológicos. A história caminha e segue o seu rumo à revelia e a contrapelo de nossas fantasias e convicções. Disso gostemos ou não.

A marcha do tempo, com as inevitáveis transformações de época, revela-se fenômeno implacável, fatalidade, síntese de múltiplas e incontroláveis determinações. Resultado sempre imprevisível do jogo das ações e reações do conjunto dos atores sobre o palco, a história, na sua concretude última, é um indefinido e inexaurível processo (devir), que escapa ao controle de indivíduos, grupos e seitas – e de seus deuses e demônios. Não perdoa, portanto, delírios e miragens.

Nesse sinuoso transcurso temporal, “direita” e “esquerda” – sem exceção – se cruzam e se mesclam (como comprovam os fatos) com democracia e autoritarismo, com corporativismo e republicanismo, com abertura e sectarismo, diluindo-se, no fragor das várias e possíveis combinações, as rígidas linhas divisórias da imaginária díade de outrora, que só resistem na fantasia dos ingênuos e dos “crentes” convertidos.

Transparência ou opacidade, honestidade ou corrupção nunca foram insígnias de exclusividade e, como tal, jamais delimitaram, por princípio, ambos territórios políticos. Com a dispersão da esfera pública, causada pelo recente aparecimento das redes sociais (e outros instrumentos de comunicação livre e instantânea), deslocaram-se as antigas “placas tectônicas” de demarcação das identidades e formas de pertencimento social, emergindo, desse devastador “tsunami”, sujeitos políticos mais plurais e “transversais”.

O mundo, para além das contendas e ideologias de costume, está a requerer – pelos laços que hoje, efetivamente, unem (objetivamente) toda a humanidade em sua diversidade – uma mais aberta, permeável e dialógica perspectiva política. Não há outra alternativa para o novo milênio que se inaugura: abertura de visão e capacidade de diálogo – com negação de toda sorte de fundamentalismo.

Tal caminho, avesso a “verdades” pré-concebidas e aos desvios de rota, apresenta-se, talvez, como a única saída para os impasses do presente e o enfrentamento dos inúmeros desafios inscritos nas imponderáveis conjunturas que já se vislumbram no horizonte – e que sempre estarão, daqui em diante, em constante ebulição.

O radicalismo ideológico é a negação, por natureza, dessa via; um contra senso e uma insensatez perante a nova realidade evidenciada à razão.

Nessa perspectiva, todas as resenhas que teimem em se autodenominar “de esquerda” ou “de direita”, apesar da caducidade semântica e das inevitáveis ambiguidades, ainda poderão oferecer, não obstante, as suas contribuições, desde que temperadas com abertura e permeadas de bom senso. Pois é justo do jogo das contradições, dos aforismos em contraposição, fertilizados, porém, pelas sementes de uma cultura dialógica, de viés republicano (que vise ao bem comum), que se poderá reinventar um novo humanismo, baseado não mais na valorização parcial de um segmento da sociedade (classe, nacionalidade, credo), mas do conjunto da espécie humana – e os rumos para o advento de um mundo (literalmente falando) melhor.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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