Togas, ternos e gravatas: Os raptores da República e da democracia

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De nada adiantam togas limpas e lustradas, se trajadas por homens sujos e opacos. Da mesma forma, de nada valem gravatas e ternos de última moda, se moldados sobre dorsos corrompidos e alquebrados. Pois os sepulcros também podem ser caiados, ocultando, na aparência de superfície, a sua subterrânea podridão.  

Não são togas, ternos e gravatas que fazem o homem e seu caráter; são os homens, com seus valores e atitudes, que dignificam (ou avilanam) as suas respectivas indumentárias.

Assim são as instituições. Essas são expressões não tanto de conceitos gélidos e findos, que podem simplesmente jazer na letra da lei (apesar do brilho de suas formulações); mas são construções inacabadas do dia-a-dia, esculpidas, ininterruptamente, pelos traços do desempenho de seus ocupantes – que podem afirmá-las e ilustrá-las pelo bom exemplo, ou pervertê-las e esvaziá-las de sentido, pela perfídia de suas performances.  

As instituições sem os indivíduos não passam de mera abstração, de intangível metáfora, pura metafísica. Pois elas só existem e se realizam, na dimensão da história, na objetividade da concretude, na materialidade da empiria – e não na ideia, na conjectura ou na imaginação. E por mais que não se reduzam a seus passageiros inquilinos – pois cumprem (deveriam cumprir) funções de natureza impessoal e coletiva –, por esses podem ser empobrecidas e desacreditadas, quando marcadas pela disfunção de suas respectivas atuações.

Decerto, não são apenas as instituições que moldam, enquanto “estruturas”, o comportamento dos indivíduos. Os homens, à sua vez, também engendram e plasmam, por meio de suas ações, a substância das instituições – dimensões múltiplas e combinadas de um mesmo e único processo, mutuamente constitutivo. Tal é, em realidade, a “dialética do concreto”, em sua pulsante e contraditória manifestação social e histórica.  

As instituições, assim, não se confundem com os indivíduos; mas os pressupõem – sem os quais não existem. Dependem, por conseguinte, de suas atitudes, de suas performances, do conteúdo (benigno ou nocivo) de seus desempenhos – do que decorre a sua legitimação e renovação no tempo, ou o seu questionamento e desapreço por parte da sociedade.  

As instituições são, por suposto, o dever-ser societário idealizado, projetado em suas funções e finalidades. Os indivíduos que temporariamente as integram são apenas os artífices da realização dessas funções, enquanto efetivação (assim se espera) do bem coletivo. Quando cumprem corretamente o seu papel, os sujeitos engrandecem e valorizam as estruturas em seus desígnios; quando não, agridem-nas e deslegitimam-nas perante a coletividade que as mantém, colocando em risco a sua prevista longevidade.  

O que se tem visto ultimamente no Brasil é, justo, a burla dessa lógica; a inversão manipulada desse entendimento, à medida que os ocupantes dos cargos pretendem ser, eles próprios, as instituições tout court – reduzindo-as a si, ao estilo Luís XIV (“l’État c’est moi”) –, ao invés de subordinarem-se, comme il faut, aos protocolos e liturgias de suas funções, honrando-os com seus comportamentos e postura. 

Nessa subversão de sentido, os ataques às “excelentíssimas” autoridades passaram a ser tratados, por elas mesmas, como “assédios” às próprias instituições, imputando-se, sordidamente, aos “contestadores da ordem” o falso selo de “agressores da democracia”,  quando ocorre, na verdade, exatamente o inverso.  

Nenhum ególatra ou tiranete de ocasião tem o direito de reduzir, por hipócrita vileza, uma  instituição pública a si mesmo, como se fosse o seu dono e a sua medida. Quando as ações de integrantes das instituições não são condizentes com os desígnios para os quais elas foram criadas, esses devem ser, sim, nelas contestados e delas expurgados, em vista de salvá-las de seus nocivos propósitos – e não o contrário, deixando-as à mercê de seus corruptores. Pois são os indivíduos que têm de estar à altura das instituições à qual pertencem – das funções para as quais foram designados – e não vice-versa.  

Não, não é o povo que, em manifestações de protesto, afronta a democracia ao questionar, com contundência, os vis representantes das instituições (que lhes pertencem!). Ao inverso: são as próprias autoridades constituídas que, no mau exercício das funções delegadas, maculam as leis e ludibriam o povo (a quem devem serventia), ameaçando, com suas falcatruas, o compromisso republicano e a ordem democrática.

Portanto, são os atuais togados e engravatados, à frente dos Poderes da República, que se constituem a verdadeira ameaça à democracia no Brasil. Pois desrespeitam, cinicamente, os seus princípios mais pétreos e basilares (inscritos na Carta  Magna); subtraem, arbitrária e impunemente, os direitos fundamentais dos indivíduos; e, com  suas atitudes e deliberações de rotina, prevaricam sem cessar em suas responsabilidades, semeando revolta, indignação e sentimento disseminado de injustiça.  

O caso do Supremo Tribunal Federal (STF) é paradigmático nesse sentido, já que nem à época do regime militar foi tão desmoralizado e repudiado pela opinião pública, tantas são as suas incoerências e inesgotáveis obscenidades jurídicas. Pois é ele que, costumeiramente, desrespeita a Constituição. Que concede, a rodo, habeas corpus e solturas a notórios e contumazes bandidos. Que atropela outras instâncias jurisdicionais, desrespeitando a hierarquia do próprio Poder ao qual pertence (e que deveria honrar). Que instaura, despoticamente, “seletivos” processos persecutórios contra supostos “adversários” (sem base legal para tal), ao mesmo tempo que impede, “em última instância”, por motivos exclusivamente pessoais ou corporativos, investigações que envolvam denúncias contra membros do Tribunal, seus parentes, amigos ou comparsas.  

Não é segredo para ninguém que a Corte – já faz tempo – vem legislando, investigando,  ameaçando, chantageando, ignorando ou alterando, dolosamente, jurisprudências; ao mesmo passo que interpretando, casuisticamente, o Direito ao sabor dos suspicazes interesses dos clientes de ocasião; ou mesmo interferindo indevidamente em outros Poderes, atuando politicamente fora dos autos, em indecoroso “ativismo judicial” – com extrapolação de suas prerrogativas finalísticas, aos moldes de uma monarquia absoluta de origem divina, com força acima da Constituição.  

Fato é que o Brasil foi capturado, em definitivo, pela “ditadura da toga”, circundada pelo compadrio subserviente e cúmplice de pigmeus morais fantasiados em ternos de grife, que, em suas abjetas e sórdidas atitudes, aviltam o símbolo maior da institucionalidade democrática, o Congresso Nacional, que deveria ser, por definição, a genuína e pulsante “Casa do Povo” – e não o seu matadouro.  

Paradoxalmente, é justo o Judiciário o único dos três Poderes que, por motivações infames e egocêntricas, rejeita sistematicamente a crítica e a contestação, arrogando-se a censurar, de forma autoritária e fora-da-lei, a plena liberdade de manifestação e expressão, fundamento supremo e cláusula pétrea de todo ordenamento democrático – quando deveria ser-lhe o máximo guardião, conforme reza a Carta Magna.  

Por todos esses sucessivos e cumulativos eventos, de notório conhecimento público, pode-se afirmar que a Constituição de 1988, há muito, já se encontra rasgada, ultrajada – e, incongruentemente, por quem deveria defendê-la e preservá-la (!). Como resultado, não há mais normalidade constitucional em vigência. Não há mais respeito aos princípios do Estado democrático de Direito. Não há mais segurança jurídica. Não há mais ordem, nem progresso. Sob o império do arbítrio, precipita-se o caos e a barbárie – com a implosão da “Nova República”.  

Em tais alarmantes circunstâncias, de afrontoso golpismo de colarinho-branco, a única coisa que resta ao povo – na ausência de institucionalidades à altura de sua defesa – é o (sempre postergado) desafio do resgate massivo da força coletiva, despertando, de uma vez por todas, para o seu intransferível papel de sujeito histórico e único soberano em território pátrio – como sentencia a Carta constitucional –, em superação àquele de habitual, passivo e submisso espectador (comme d’habitude), sempre à mercê dos oportunistas e/ou tiranetes de plantão. 

Sim, porque a classe política brasileira (e seus cupinchas togados), imersa em sua incurável arrogância e empáfia, de costas para os seus representados, nunca acreditou em uma reação dos sans-culottes tupiniquins. Nunca se sentiu ameaçada. Nunca temeu a força (e a forca) de uma revolta popular – inebriada que sempre esteve pelo monopólio do poder e confiante na impunidade historicamente garantida de seu foro privilegiado, afiançado por uma ordem jurídica que, a todo tempo, concede-lhe recursos protelatórios até a consumação da prescrição de seus múltiplos crimes. 

A história, contudo – não custa nada lembrar aos incautos e desavisados –, está prenhe de ensinamentos e exemplos a demonstrar que nenhum domínio, no reino dos homens, por mais absoluto e imbatível que pareça à primeira vista, é permanente ou perpétuo; e que, portanto, nenhum povo está condenado, a priori (ou ad aeternum), por suposta (e inexistente) “lei natural”, à imorredoura condição de escravidão (física ou moral) – como presumem, em ilusório e prepotente ufanismo, os seus opressores. 

Quem sabe, para a surpresa de tantos – e o espanto daqueles que se enclausuraram em um forjado “Monte Olimpo”, julgando-se “deuses” –, justo pelo fato de a corda já ter sido esticada ao máximo e corroída ao extremo por quem deveria tê-la, ao menos por prudência, preservado, ela venha a arrebentar, por um minúsculo impulso, a qualquer momento (e sem aviso prévio!), por reação e graça da (por muitos) desdenhada força popular – completando-se, finalmente, o que restava do itinerário interdito da Inconfidência Mineira e da inconclusa e aspirada proclamação da República. 

Libertas Quae Sera Tamen – quem sabe?! 

E se assim tiver que ser, sê-lo-á, ainda que tardiamente, sem dó, nem piedade, por sobre a escuridade turva das togas impudicas e o mofo malcheiroso dos ternos corrompidos daqueles que sempre estorvaram, com suas indignas e inescrupulosas condutas, o tão sonhado Projeto  de Nação. 

Que não duvidem os imaginários e presunçosos “donos do poder”!

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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