A vida difícil da ‘arraia miúda’

17/09/2016 às 11:01 Ler na área do assinante

Na Revolução Francesa, no final do século XVIII, uma população pobre e marginalizada da sociedade como trabalhadores braçais, desempregados, prostitutas e mendigos, manipulados por líderes políticos da época, eram conhecidos como os sans culotes (os sem-calças). Era uma massa social disforme e desorganizada que agia conforme interesses imediatos e vendia seu apoio a quem lhes oferecesse algumas migalhas. Teria sido aos sans culotes que Maria Antonieta sugeriu que, na falta de falta de pão, comessem brioches. Mas essa é uma outra história... por sinal, mal contada.

Esses miseráveis, de fato, dirigiram sua fúria e seu ódio à nobreza privilegiada na sociedade francesa da época, derrubando a famosa Bastilha e atacando o palácio de Versalhes, no início da Revolução de 1789.

No século XIX, Marx, dedicado ao estudo do capital e da sociedade de classes, explicou que uma determinada camada da população não se enquadrava na categoria de classe social e a chamou de lúmpenproletariado. Eram pessoas pertencentes à massa da população marginalizada e pobre que vivia na órbita dos grandes centros urbanos e industriais. Não tinham qualificação profissional e viviam de pequenos e ocasionais serviços, incluindo atividades clandestinas ou aquelas que ninguém fazia (faxineiros, limpadores de fossas e chaminés, prostitutas, estivadores e outros.

Essa categoria não tinha condições de participar ou desempenhar um papel decisivo na luta de classes e no processo revolucionário de transformação da sociedade. Conforme Marx, a verdadeira revolução devia ser conduzida pela classe trabalhadora. O lumpesinato, por sua vez, servia, do ponto de vista político, à manobra das lideranças revolucionárias, e oportunistas em muitos casos, estando sempre pronto a sair às ruas com objetivos também oportunistas para obter benefícios próprios e imediatos.

O “partido” que esses miseráveis tomavam não dependia de coerência ou de ideologia própria, tanto fazia estar do lado dos trabalhadores quanto dos patrões.

As teorias de Marx são ainda aceitas por uns, mal compreendidas e contestadas por outros, mas a sua descrição dessa sociedade marginal é válida até os dias de hoje.

Ainda no século XIX, no período regencial da monarquia brasileira, tornou-se comum encontrar em documentos oficiais a referência a esta população marginalizada e envolvida em manifestações nativistas como grupo de desordeiros, chamados de “arraia miúda”. Para a manutenção da política conservadora imperial a grande carga da repressão recaiu sobre ela.

Na província de Mato Grosso, por exemplo, no movimento revolucionário de 1834, quando os nativistas tomaram o poder por três meses, os documentos oficiais foram recheados com essa expressão. Eram soldados subalternos envolvidos em insubordinações, pequenos artesãos, empregados domésticos, desempregados, prostitutas, mendigos e miseráveis de modo geral. Historicamente, foi sobre eles que se dirigiu a repressão mais brutal do poder constituído.

Os tempos mudaram e esses episódios e personagens só fazem parte dos livros de história, mas que devem ser lidos e analisados para que se tenha uma clara compreensão da sociedade que temos em pleno século XXI.

Hoje existe ainda uma enorme camada de população pobre e desprotegida, desqualificada profissionalmente, excluída da maioria das políticas públicas fundamentais, mas que não pode ser incluída nas categorias explicativas acima. Classificada arbitrariamente como classes D e E, agregam os trabalhadores do mercado informal e ilegal, os desempregados, moradores de rua e muitos outros excluídos. Entretanto, essa população é vista com olhos de cobiça em épocas eleitorais, sobretudo porque votam. Isto explica também porque existem diversos programas assistenciais (explicitamente eleitoreiros) que a princípio foram pensados para atenuar a pobreza extrema dessa gente.

Em recente viagem à São Paulo, vi estarrecido milhares de pessoas morando em imundas barracas cravadas nas calçadas, nos canteiros e bases de viadutos. Creio que o abandono e a fome colocam este contingente a um passo da explosão social, no centro mais importante e rico do país.

Permito-me tirar do baú da história a expressão “arraia miúda” para definir esses miseráveis e vejo exemplos bem próximos de nós, aqui em Mato Grosso do Sul. Quando foi privatizada a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, todas as preocupações voltaram-se à situação aflitiva e delicada dos ferroviários. Mas ninguém se atentou para um volume de pessoas, e de suas famílias, que ficaram “a ver navios ou trens” neste triste episódio. Foram os carregadores de malas, os vendedores de jornais e revistas, garçons dos bares da estação e dos carros restaurantes, vendedores de chipa e de peixe frito. Enfim, todos os que viviam e se sustentavam gravitando ao redor das estações da ferrovia. O que aconteceu com eles?

Quando houve a transferência da tradicional e histórica feira livre para o pátio da ferrovia, não se levou em consideração a quantidade de pessoas que ficaram sem trabalho. Com certeza, muitos não se enquadraram no espaço da nova feira central. O mesmo ocorreu com a construção da nova estação rodoviária de Campo Grande. Como em outros casos, o que aconteceu com o desemprego provocado com a mudança do terminal interestadual? Como um caso recorrente, foram carregadores, maleiros, jornaleiros, garçons, empregados das pequenas lojas e até trabalhadores informais, como vendedores de chipa, de relógios (com certeza falsificados e contrabandeados), cigarros e bugigangas de ocasião, de salgadinhos, garrafas e copinhos de água, etc. Como ficaram suas famílias?

Agora, com a brutal crise econômica que assola o país, incluindo a nossa cidade, está aumentando o contingente de desempregados e a dramática sobrevivência dessa gente miúda está sendo varrida para debaixo do tapete. Antes, em épocas de eleições, havia alguma migalha oferecida pelos candidatos que buscavam visibilidade e votos. A crise e a proibição de “práticas análogas à compra de votos” deixam esses miseráveis na mão.

Não tá fácil prá ninguém....

Valmir Batista Correia

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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