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Enredo de um golpe anunciado: Os 4 planos do mecanismo

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Não há coincidências em política – dizia Tancredo Neves. O que acontece é quase sempre combinado. Previamente planejado, armado, calculado. Por vezes, com maior ou menor nitidez, nos lampejos mais tangíveis dos atores em cena – ou, como regra comum (longe do olhar da plateia), nos caixilhos mais velados dos inacessíveis bastidores, onde nem todos os personagens da montagem (por vezes os principais) se dão a conhecer. Nesse espaço, o acaso não é (nunca foi) a generalidade.

A desqualificação dessa premissa, sob o falso argumento (muito utilizado por acadêmicos de gabinete) de que não se deve dar crédito a, assim ditas, “teorias da conspiração” – como se maquinações não existissem em grau muito mais acentuado (e sórdido) do que é capaz de imaginar a nossa vã (e ingênua) “filosofia” –, apenas cumpre a função de impedir o espinhoso exercício de imputação de sentido aos fatos, à primeira vista, desconexos ou despercebidos, obstando um melhor discernimento das intrincadas conexões e elos dos eventos sob mira.

Tal é o que ocorre na atual (e conturbada) conjuntura política nacional, prenhe de narrativas desviantes, dissimuladas e enganosas.

Os indícios e amostras do engenhoso e “maquiavélico” enredo em encenação – com seus respectivos editores, simuladores e protagonistas – são suficientemente fartos e expressivos e, diga-se de passagem, não por acidente sincronicamente “coincidentes”. Basta observar, com apropriada atenção e imparcialidade, o conjunto interminável de sucessivos e atípicos

acontecimentos que, na quadratura desse palco, ribombam a cada dia, reverberando-se  reciprocamente, para se derivar, medianamente, de sua sintomática e sugestiva heurística,  algumas elementares e significativas conclusões.

De saída, não se pode descurar a “causa” que originou todo esse desassossegado cenário, sem o que qualquer diagnose ou conjectura perde significado e ajustado fundamento: a imprevista e ruidosa eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, contra todos os prognósticos prevalecentes de circunstância. Foi lá, desde lá, que tudo começou!

“Azarão” e notório outsider, sem qualquer base partidária, financeira ou midiática de envergadura, Bolsonaro chegou (legitimamente) ao poder pelo voto popular, surfando na onda de contestação generalizada ao estado de corrupção sistêmica revelado, à época, pela Operação Lava Jato, e desbancando, com a credencial de opositor radical da situação, as candidaturas que,  como a do PT, eram associadas à manutenção do contestado e repudiado status quo. E foi justamente esse ensaiado e “atrevido” enfrentamento aos antecedentes padrões estabelecidos (e não o formato do discurso em si) a razão maior, perante seus adversários, de sua imperdoável “heresia” e “delito”.

Sim, porque sendo um ponto fora da curva, um “inóspito” no poder, o “destemido capitão” atraiu contra si toda a repulsa do tradicional establishment que, até então, sem maiores contratempos, dentro do programado figurino, vinha cumprindo com sucesso, em revezamento de fiéis (ainda que heterogêneos) delegados no Poder Executivo (“teatro das tesouras”), o seu principal intento: o manuseio privativo (e privatista) das chaves do Tesouro e o monopólio exclusivo da distribuição dos “papéis” mais prestigiosos da engrenagem entre seletos figurantes  da pantomima.

Não poderiam suportar, as cleptocráticas oligarquias patrimonialistas – que nunca foram republicanas, tampouco democráticas –, ainda que por pouco tempo (um simples e passageiro  mandato), a secura repentina (e inaudita) dos cofres públicos e o abalo inesperado de seu  desafogado e cultivado prestígio, com perdas substantivas de consuetudinários privilégios e vantajosas esferas de influência.

A reação dos habituais “donos do poder”, por todo o contexto traçado, tinha de vir em bloco, ponderadamente irosa e conluiada (“esquerda” e “direita” no mesmo “consórcio”), tendo em vista o resgate, a qualquer preço, o mais urgente possível, da precedente e momentaneamente escapulida posse integral do poder totalitário de Estado.

Para isso era necessário, em primeiro lugar (Plano 1), demonizar a figura do novo (e “indesejado”) presidente por meio da disseminação artificiosa de pechas injuriosas e  desgastantes à sua imagem pública: “tosco”, “racista”, “misógino”, “fascista”, “homofóbico”,  “machista”, “genocida”, “negacionista”, etc. – tendo sido designada para desempenhar o papel  central de tal ardilosa empreitada a grande e velha mídia (escrita e televisiva), “sócia” de  primeira hora do engenhoso esquema.

Seguiram-se a esse estratagema (Plano 2) as inúmeras tentativas, pelo Congresso Nacional, de  semeadura de “justificativas” para um possível impeachment presidencial – com destaque para  as CPIs das Fake News e da Covid 19 –, pari passu ao travamento de matérias estratégicas de  interesse do Governo (reformas, emendas constitucionais, projetos de lei), tudo capitaneado  (ou permitido) pelas sucessivas presidências das duas Casas (Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco), para fins de gradativo desgaste governamental.

Ao mesmo tempo, plantou-se, com a perceptível parceria do Supremo Tribunal Federal (STF), numerosos inquéritos judiciais (ainda em trâmite) contra o Chefe do Executivo, com o propósito de imputar-lhe, por forjada hermenêutica, algum “crime de reponsabilidade”, em vista de uma expectável cassação de mandato (Plano 3).

O fato de, nesse cenário, os partidos de oposição já terem perdido (desde a Lava Jato) a sua pretérita hegemonia (capacidade de convencer a sociedade), viu-se obrigado, o “sistema”, a apelar, como artifício alternativo de confrontação, à intervenção direta (ainda que inconstitucional) do (aparelhado) Poder Judiciário no campo de batalha, transformado o STF (e,  por osmose, o TSE), à vista disso, em verdadeira (e ilegítima) “facção partidária”, com instauração de anômalo ativismo judicial na arena política em ebulição – inclusive com atitudes  nitidamente abusivas e autoritárias contra presumidos adversários de ocasião (“ditadura da  toga”), como fartamente constatado . 

Foi nesse diapasão intervencionista, tendo como pano de fundo a inabalada popularidade do Presidente (inobstante os afrontosos petardos lançados contra si, ardilosamente, em tempos de  pandemia) e o retumbante fracasso, por conta disso, dos intentos contidos nos planos 1, 2 e 3,  que foi arquitetado, pelo mesmo “mecanismo” (deep state), ante o avizinhamento  incontornável das eleições presidenciais de outubro de 2022 (derradeira etapa da “guerra”),  uma última e desesperada investida contra a continuidade de Bolsonaro no poder por mais  quatro anos, dessa feita liderada e executada diretamente pelo próprio STF e TSE, cuja sequência  concatenada de eventos, iniciada em 2021, pode ser descrita como “plano 4”, a saber:

a) a soltura, com resgate da candidatura, de Lula (único líder populista capaz de fazer frente ao mitificado “capitão”);

b) o impedimento da introdução do voto impresso nas urnas eletrônicas (impossibilitando uma maior transparência na auditagem do futuro escrutínio);

c) a censura seletiva e facciosa a canais de apoio ao Presidente nas redes sociais, com determinação de seu fechamento, suspensão e/ou desmonetização;

d) a perseguição e penalização de apoiadores do Presidente (jornalistas, políticos, empresários, religiosos), com vetos inconstitucionais à liberdade de expressão;

e) a discriminação de manifestações populares pró-Bolsonaro como atos “fascistas” e “antidemocráticos”;

f) a resistência ao estreitamento da colaboração das Forças Armadas no controle de fraudes no sistema de apuração dos votos, com vetos à maioria de suas endereçadas  sugestões;

g) a participação de ministros do STF em lives e eventos internacionais direcionados à depreciação e desgaste da imagem do Governo brasileiro;

h) a inusitada articulação prévia da presidência do TSE junto a embaixadas de países estrangeiros (papel reservado, restritamente, ao Poder Executivo), motivada pelo estranho objetivo de garantir a sua imediata adesão aos resultados oficiais da eleição, a  serem proclamados, em momento cabido, pelo Tribunal;

i) a ameaça à cassação improtelável de candidaturas com base no que possa ser caracterizado, a critério exclusivo e unilateral do TSE, como disseminação de “fake News”.

Trata-se de uma coletânea de insólitos episódios que vêm se somando ao longo do caminho e que denotam não menos que suspeitosa “coincidência”, com o foco das ações agora centrado na controversa gestão do processo eleitoral (urnas eletrônicas), sob o comando, justo, daqueles que, durante todo o sinuoso percurso, apresentaram credenciais de parcialidade, falta de decoro e “suprema” iniquidade, ao invés de isenção, discrição e impecável equilíbrio – como se esperaria de juízes dignos de uma Suprema Corte de Justiça.

Por tantos e multíplices motivos, as eleições de outubro se encontram sob forte e insustentável suspeição, reforçada, ainda, pela desconfiança generalizada quanto à adulteração proposital das intenções de voto por controvertidos (e bem pagos) Institutos de Pesquisa (a exemplo de 2018), o que impulsiona a hipótese da fabricação de um álibi para justificação antecipada de uma projetada (e criminosa) fraude eleitoral (por que não?!) – em sintonia com a propalada e sintomática declaração de um célebre ministro do STF de que “eleição não se vence, se toma”.

Tudo mera “casualidade”? “Teoria da conspiração”?

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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