A vitória de Trump e seu impacto na economia brasileira

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Há uma lenda urbana nos EUA sobre uma suposta viagem informal do então presidente Bill Clinton à pequena Park Ridge, uma cidade com cerca de 40 mil habitantes no extremo nordeste de Illinois. Foi lá que sua esposa Hillary passou maior parte da infância e da adolescência. Despidos do tradicional aparato de segurança da Casa Branca, o casal, a filha Chelsea e o labrador chocolate Buddy estacionaram o veículo no posto Citgo, na esquina da Northwest Highway com a Nagle Avenue. Para surpresa de todos, o frentista responsável era um ex-namorado da agora primeira-dama do país. À despedida, ele teria dito à Hillary, em tom de resignação: “Viu como são as coisas?! Se você tivesse casado comigo, hoje seria esposa de um frentista de posto de combustíveis em Park Ridge!” Foi imediatamente interrompido por Bill: “Não, meu amigo! Se ela tivesse casado contigo, hoje você seria o presidente dos Estados Unidos da América.

Na extensa autobiografia “Minha Vida” (publicada no Brasil pela Editora Globo, em 2005), Bill Clinton não confirmou o encontro, tampouco o negou, mas narrou algumas passagens sobre a “viagem secreta e informal” que realizou com a família em 1998, dirigindo o próprio carro e quase isentos da guarda oficial. A lenda urbana acabou ganhando força e tornou-se argumento frequente de democratas para descrever a experiência e o poder de Hillary Clinton durante a campanha eleitoral de 2016. Em termos institucionais, ela seria imbatível, apesar da forte rejeição sofrida no interior do país.

Seu adversário era considerado relativamente fácil. O excêntrico bilionário nova-iorquino Donald Trump sequer tinha boas e edificantes histórias de vida a contar, como rezam os ditames passionais de um pleito presidencial. Ao contrário, sua trajetória é cercada por escândalos midiáticos, questionamentos sobre sua fortuna e sobejos discursos politicamente incorretos. Em tese, Hillary não precisaria vencer Trump. Ele causaria a própria derrota.

Quem restou derrotada foi a tese. Considerado um outsider e sem apoio dos velhos e poderosos caciques do Partido Republicano, Donald Trump deu um nó nas doutas análises, derrotou Hillary Clinton em número de delegados no colégio eleitoral (ela obteve mais votos diretos, mas o sistema eleitoral norte-americano é indireto) e conquistou o cargo mais poderoso do planeta. Dadas as circunstâncias, trata-se de feito histórico, case a ser amplamente estudado pelas próximas gerações. 

OS IMPACTOS NO BRASIL 

Um dos maiores equívocos vistos durante a campanha e apuração da eleição presidencial dos EUA foi o volume de críticas aos brasileiros que estavam atentos e ativos nos debates, especialmente através das redes sociais. Desprezar o pleito majoritário norte-americano revela desconhecimento dos mecanismos de comércio exterior e, em especial, as importantes relações bilaterais entre os países.

 A eleição de Donald Trump implica diretamente a ascensão de uma política menos globalizada e mais nacionalista, protecionista. Qual é o impacto para o Brasil? O primeiro deles é exatamente o menos danoso, porque imediato e sem qualquer vestígio de continuidade: a cotação do dólar disparou e o índice da bolsa de valores despencou. É o choque inicial. Em alguns dias, o próprio mercado financeiro buscará um patamar de equilíbrio. Neste momento, o maior risco de um distúrbio está condicionado às políticas internas do Brasil, como o trâmite da PEC 241 (teto de gastos públicos) e das reformas da Previdência, Política e Trabalhista no Congresso Nacional. Qualquer desvio de rota pode ter um impacto profundo e de longo prazo.

O ponto nevrálgico da vitória de Trump está nas relações comerciais. Em seu plano de governo, o republicano propõe maior rigidez norte-americana nas importações, fortalecendo o mercado interno, e uma intervenção severa na política de exportações. Na prática, isso significa a sobretaxação nas alíquotas de produtos importados e ampliação das barreiras sanitárias e o aumento substancial de subsídios governamentais para lastrear ainda mais a competitividade dos EUA no cenário internacional.

A ascensão de Trump projeta, portanto, um cenário difícil para o Brasil nos próximos quatro anos, em maior medida para estados como Mato Grosso e Goiás e para o interior de Minas Gerais e São Paulo. Produtos agrícolas, como soja, uva, laranja e seus derivados, serão submetidos ao aumento de impostos para entrada em solo norte-americano, reduzindo a margem de concorrência com os próprios produtores dos EUA e de outros gigantes nessas áreas, como China e Índia.

No caso dos produtos de origem animal, desde 2008 o Brasil lidera o ranking internacional de exportação do setor. Na relação direta com os EUA, há pouco mais de três meses, em agosto de 2016, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, conseguiu formalizar um acordo comercial que se arrastava por longos 17 anos, promovendo a abertura do mercado norte-americano para a carne in natura brasileira. Pelas estimativas oficiais, o acordo pode aumentar em quase US$ 1 bilhão os ganhos brasileiros com a exportação do produto. A eleição de Trump altera tal perspectiva e pode até anular as tratativas, caso a sobretaxação de produtos brasileiros e a ampliação de barreiras sanitárias torne a concorrência inviável.

Ou seja, apenas pelos dois exemplos supracitados, é possível aferir que a preocupação dos brasileiros com a eleição nos EUA não é apenas um debate vazio e iníquo de redes sociais. A decisão das urnas norte-americanas tem impacto direto nos cofres públicos do Brasil, um assunto bastante delicado e que merece nossa máxima atenção em tempos de gravíssima crise econômica.

TRUMP NA BALANÇA DA HISTÓRIA

O dia 09 de novembro registra fatos históricos de enorme envergadura. Foi nesta mesma data, em 1799, que Napoleão Bonaparte consolidou o golpe de estado na França, conhecido como Golpe do 18 Brumário (pelo calendário gregoriano, 18 brumário = 09 de novembro), colocando fim à Revolução.

Em 1938, o 09 de novembro marcou oficialmente o início do Holocausto, quando uma onda de violência coordenada pelo Terceiro Reich de Adolf Hitler destruiu casas, lojas, sinagogas e quaisquer outras edificações identificadas como judias, além de assassinatos e prisões em larga escala, naquela que ficou conhecida como Noite dos Cristais. Foi também em um 09 de novembro, desta vez em 1989, que o processo de reunificação das Alemanhas Ocidental e Oriental foi deflagrado com o emblemático episódio da queda do Muro de Berlim.

Agora, o 09 de novembro de 2016 adentra a História com o dia da eleição do mais improvável dos seres humanos ao cobiçado Salão Oval da Casa Branca.

LIMITE PROTOCOLAR E O “ADMIRÁVEL MUNDO NOVO”

A ausência de limites e bom-senso de Donald Trump será fatalmente adequada aos protocolos oficiais da Chefia de Estado. As instituições democráticas norte-americanas são sólidas e raramente um presidente consegue impor seu mando sem que este seja referendado pela Câmara dos Representantes, pelo Senado e, quando necessário, pela Suprema Corte. Basta observar que a Constituição dos EUA é a mesma desde sua promulgação em 1789, sofrendo apenas 28 emendas em seus 227 anos de vigência. Para se ter uma ideia da perenidade legal e institucional dos EUA, a última Constituição do Brasil, promulgada em 1988, contabiliza neste momento 273 emendas propostas e boa parte de seus ditames ainda carece de regulamentação.

Outro grande destaque na vitória de Donald Trump foi a maciça adesão dos principais veículos de comunicação do mundo à candidatura de Hillary Clinton. Merecendo ou não, sistematicamente o bilionário foi atacado com manchetes brutais e teorias que, não raro, escapavam à realidade dos fatos ou elucubravam posições político-ideológicas em maior ou menor escala diversas àquelas apresentadas pelo candidato republicano. É o caso da imigração, por exemplo. Trump posicionou-se duramente contra a imigração ilegal e o tráfico de drogas na fronteira com o México, mas os ditos “formadores de opinião” trataram de cravar que o magnata era um xenófobo, capaz de bloquear ou expulsar à bala todo e qualquer imigrante e não apenas os ilegais, como prevê seu programa de governo.

A verdade dos fatos é que, desde 2012, os cidadãos comuns ao redor do planeta estão emitindo sinais de cansaço extremo com delírios de intelectuais forjados na academia e no submundo da política. Desde então, manifestações têm ganhado destaque em vários países, agora com vocais de longo alcance proporcionados pelas redes sociais. Não por acaso, são esses intelectuais e políticos os primeiros a criticar ferozmente o universo virtual que os assusta e devora.

No Brasil, o impeachment de Dilma Rousseff, o apoio quase unânime à Operação Lava-Jato e a vigorosa eleição em primeiro turno do outsider João Dória em São Paulo são frutos desse processo, impondo duas derrotas: à confiança nas pesquisas eleitorais e de opinião; e a uma espécie de jornalismo, que via de regra confunde a “paixão por informar” com “informar com paixão”, com prejuízos reais à fundamental isenção.

Brexit no Reino Unido, a derrocada na liderança de Angela Merkel e François Hollande na União Europeia e agora a eleição de Donald Trump também são sintomas desse “admirável mundo novo”. Em juízo maniqueísta, se bom ou ruim, melhor ou pior, só o tempo irá responder.

Helder Caldeira

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Helder Caldeira

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
*Autor dos livros “Águas Turvas” e “A 1ª Presidenta”, entre outras obras.

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