O duplo registro de memória

30/01/2017 às 17:03 Ler na área do assinante

O artigo que ora apresento contém uma descoberta de um duplo registro de memória na espécie humana. Como toda descoberta este artigo deve ser fundamentado com a Epistemologia que, infelizmente, ainda engatinha no Brasil.

Por tal razão sinto que será útil introduzi-lo somente após levar ao leitor uma noção necessária e suficiente do que seja Epistemologia, o que facilitará o entendimento e colocará o artigo à prova, como tudo deveria ser feito em Ciência, sob as diretrizes epistemológicas de Karl Popper expostas a seguir. Para a Epistemologia são fundamentais as noções filosóficas do que seja objetividade e subjetividade, razão porque começo meu arrazoado sobre epistemologia abordando estes dois conceitos fundamentais.

A conceituação filosófica dos termos objetividade e subjetividade foi especialmente trabalhada por Kant8, que usa a palavra "objetivo" para indicar que o conhecimento científico deve ser justificável, independentemente de capricho pessoal. Uma comunicação, uma descoberta, serão objetivas se puderem, em princípio, ser submetidas a prova e compreendidas por todos. Diz Kant8:”: Se algo for válido para todos os que estejam na posse da razão, seus fundamentos serão objetivos e suficientes". Aplica a palavra "subjetivo" para os nossos sentimentos de convicção (de vários graus). Estes sentimentos surgem, por exemplo, de acordo com as leis da associação, acrescentando ainda o filósofo que "razões objetivas também podem atuar como causas subjetivas de juízo, à medida que possamos refletir acerca dessas razões, deixando-nos convencer de seu caráter racionalmente necessário". Popper10, por sua vez, sustenta que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou verificáveis mas que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas a prova. Em conseqüência, a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste. Em seu livro, citado na bibliografia10, Popper reconhece que Kant foi "talvez o primeiro a afirmar que a objetividade dos enunciados científicos está estreitamente relacionada com a elaboração de teorias - com o uso de hipóteses e de enunciados universais...Só quando certos acontecimentos se repetem, segundo regras ou regularidades, tal como é o caso dos experimentos passíveis de reprodução, podem as observações ser submetidas a prova -em princípio- por qualquer pessoa. Na teoria popperiana, por este denominada "Teoria do Método Dedutivo de Prova"10, uma hipótese só admite prova empírica - e tão somente após haver sido formulada. O trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las a prova. Com isso ele quer dizer que "o estágio inicial, o ato de conceber, criar ou inventar não reclama análise lógica nem dela é suscetível, só importando a justificação de validade (o quid juris?, de Kant)"(Popper)10. Afirma ainda este filósofo que não existe um método lógico de conceber idéias novas porque toda descoberta encerra "um elemento irracional ou uma intuição criadora, no sentido de Bergson". Indo além, Popper afirma não haver enunciados definitivos em ciência, o que concorda com Kant, pois a coisa em si, a verdade absoluta, é incognoscível, sendo o conhecimento em ciência sempre aproximativo e passível de ser mudado. Errar em ciência é inevitável. Em Psicanálise, o desenvolvimento científico não é diferente das demais ciências, não havendo desacordo com os critérios filosóficos de Kant e Popper. A realidade de que a Psicanálise pode tomar conhecimento é a realidade das apresentações psíquicas da pulsão, e não das pulsões em si mesmas. Freud disse a respeito que "o objeto interno é menos incognoscível que o mundo exterior...como o físico, tampouco o psíquico necessita ser em realidade tal como nos parece. Todavia nos agradará descobrir que a retificação da percepção interna é menos rebelde do que a retificação da percepção externa, e que o objeto interno é menos incognoscível do que o mundo exterior".

Todavia, finaliza Popper10:"todo enunciado científico empírico pode ser apresentado de maneira tal que todos quanto dominem a técnica adequada possam submetê-los a prova. Se, como resultado, houver rejeição do enunciado, não basta que a pessoa nos fale acerca de seu sentimento de convicção, no que se refere às suas percepções. O que essa pessoa deve fazer é formular uma asserção que contradiga a nossa, fornecendo-nos indicações para submetê-la a prova. Se ela deixa de agir assim, só nos resta pedir-lhe que faça novo e mais cuidadoso exame de nosso experimento, e que reflita mais demoradamente". Sob as luzes da Epistemologia, como apontada nos parágrafos anteriores, vou apresentar minha descoberta, a de que há dois registros distintos de memória na espécie humana, colocando minha descoberta a prova por todos que dominem a técnica adequada e a possam submeter a teste. Por razões didáticas vou dividir a explanação de minha descoberta em dois capítulos abaixo descritos.

CAPÍTULO 1

Nosso destino é construído no decorrer da ontogênese, como edificação psíquica fantasmática que se inicia no útero com impressões e emoções emanadas do inconsciente materno. O destino habita o porão da nossa mente, de tal maneira que cada um de nós, dependendo de como resolve, ou não, o complexo de Édipo, determina para si próprio, sem nunca o saber conscientemente, isto é, com os recursos da memória comum que conhecemos, todo o trajeto de vicissitudes que irá percorrer pela vida afora. Não está escrito nos astros, embora muitas vezes possa ser previsto à perfeição por astrólogos, cartomantes, videntes, pais-de-santo: não porque forças do além ou almas do "outro mundo", que não existem, venham em auxílio para esses maravilhosos paranormais. O que acontece é que estes têm a faculdade, ainda desconhecida da ciência em sua fisiologia, de fazer a leitura direta do inconsciente (do consultado) pelo inconsciente do paranormal. Todavia, é de conhecimento público e universal que estas acertadas previsões, acertadíssimas muitas vezes, apenas reportam para o consultado o que vai ocorrer em sua vida, mas exatamente são acertadas porque nunca servem para mudar o curso do destino do consultado ou de sua história.

Não há psicoprofilaxia para miríades possíveis de autoconfigurações ontogenéticas da psicogênese de cada um de nós, já que dependem, cada uma, de fatores intrínsecos e ainda imponderados de cada criança que vem ao mundo, parecem depender pouco ou nada do nosso DNA já que gêmeos homozigóticos podem traçar para si destinos completamente diferentes - o que isenta os pais e a família de qualquer responsabilidade. No cume de minha carreira profissional, que se deu no ano de 1991, descobri a "Memória dos Freitas" (e aqueles que ficarem curiosos porque dei à memória que descobri o nome de minha família digo que foi por um imperativo categórico, exaustivo e desnecessário de explicar aqui, mas extensamente explicado no meu livro, constante da bibliografia)4 e a publiquei na terceira edição de meu livro "Psicofarmacologia Aplicada à Clínica". A Memória dos Freitas é uma descoberta psicanalítica e é uma expressão de nosso destino.

A imensa maioria das pessoas passa a vida estritamente dentro de seus preceitos e limites, mas uma minoria de pessoas rompe com estes, embora mesmo assim sua influência sobre tais rompedores continue implacável por toda a vida. Aqueles que vivem unicamente nos preceitos e limites da Memória dos Freitas são a maioria do povo, os menos inquietos com seus dogmas, os que não sentem necessidade de criar, de procurar um pensar genuíno, inovador ou mesmo revolucionário, nem mesmo alcançam uma diferenciação de self do conjunto simbiótico da horda humana em que vivem. Comportam-se, no mundo, como rebanho. Para os que podem usufruir desta benesse, há uma tessitura de vida pronta, aprendida e apreendida na casa parental, no convívio social, e, em geral, podem ter garantido para si uma vida menos atribulada, ou até estável, já pronta -como destino- no porão da mente. Mantêm-se na mediocridade de ser e não precisam transgredir a Memória dos Freitas. A Memória dos Freitas é a memória sócio-cultural-inconsciente-familiar-pessoal do indivíduo, sua mitologia, sua religião e crenças, seus ideais a serem perseguidos, dentro de sua tradição e seu folclore. Os transgressores não o fazem por prazer mas por necessidade (inquietação anímica, sensibilidade supra-mediana). A compositora Chiquinha Gonzaga, por exemplo, cuja vida anímica não cabia em sua tradição familiar e cultural rompeu pela esquerda com a Memória dos Freitas. Quando há esta ruptura, torna-se impossível regressar a esta memória e viver dentro de seus preceitos, e o indivíduo transgressor é obrigado a criar para si e para o mundo, redesenhar o universo para renominar as coisas, outros meios e métodos, outros paradigmas, outros ideais a serem perseguidos, outra maneira que lhe ajude a não sucumbir ao caos que decorre do abandono de padrões familiares, culturais, sócio-educativos pré-estabelecidos no decorrer e na construção feita por várias gerações suas ancestrais, cujo objetivo é "enquadrar" o rebanho e tornar possível a vida em sociedade (a mediocridade do nquadramento como rebanho é necessária, pois sem as normas inconscientes, as massas promoveriam a barbárie e a autodestruição: a Memória dos Freitas é uma necessidade humana, nesta pré-história do humanismo). Para os que rompem pela esquerda, criar passa a ser uma tarefa árdua e compulsória, ah! esses príncipes e pricesas da solidão!, mesmo que aparentemente acompanhados.

O sujeito bem adaptado à Memória dos Freitas vive, em geral, sem grandes inquietações interiores, e suas ambições coincidem com as de seu meio sócio-cultural, sendo por isso bem aceitos em suas comunidades.

Tais pessoas podem enriquecer de dinheiro, tomar postos no grande empresariado, nas lideranças políticas ou religiosas, podem ser excelentes profissionais liberais, como também podem -a maioria- fazer parte da população de baixa renda. São todos estes os indivíduos comuns do povo e sua maioria é aquilo que podemos chamar de "pessoa normal". Para aqueles que rompem pela esquerda com a Memória dos Freitas, surgirá, inexoravelmente, a hostilidade familiar e social: o sujeito passa a ser visto como esquisito, extravagante, ou mesmo "maluco". Todo este mal-estar que causa à família e ao meio social que freqüenta provoca, nestes últimos, a reação de contrapartida, cujo objetivo (inconsciente) é forçar a volta daquele que rompeu para os cânones da Memória dos Freitas, já que o rompedor questiona dogmas e valores sociais vigentes, ameaçando a homeostase do rebanho. Um artista ou escritor de talento, um compositor ou pintor criativo, irá experimentar estranheza ante aquilo que, antes, lhe era familiar, e passará a questionar e mudar sua visão de mundo. Há, então, de pagar o ônus de ser diferente para conseguir conviver com aceitável harmonia no meio social que o hostilizará. Paradoxalmente, com o passar dos anos (mas às vezes, infelizmente só post-mortem) terá compensações e reconhecimentos, que normalmente tardam. Mas certamente ganham para si próprios os louros de maior riqueza na vida espiritual , além de deixar um legado conceitual enriquecedor para a humanidade. A Memória dos Freitas é , também, uma fonte de conhecimento de nossa pré-história, e neste sentido não pode ser desprezada. Por exemplo, nos sonhos, na regressão hipnótica, nas rememorações verdadeiras -embora ainda explicadas com teoria pífia e errônea- ocorridas nas auto-denominadas "terapias-de-vidas-passadas" (que são inócuas exatamente por causa da fundamentação teórica bizarra), em gestos e comportamentos "involuntários" (inconscientes) que o indivíduo reproduz no cotidiano ou em alguma época de sua vida, tais como uma maneira de andar (lembrar a Gradiva, de Jansen, analisada por Freud), ou movimentar coreograficamente as mãos e o corpo ou comportar-se com gestos, temperamento, caráter tal qual um bisavô ou bisavó que nunca conheceu (características muitas vezes atávicas), ou uma compulsão para adoecer das pernas a partir de uma certa idade, na velhice, comum em algumas gerações de famílias que acompanho e anoto o registro4, de tal maneira que o descendente remoto, irmãos e primos param de andar sem razão médica detectável, imitando mesmo que atavicamente seus ancestrais desconhecidos. Toda esta constelação de fatos pode nos dar pistas sobre as "vidas passadas", o destino e a Memória dos Freitas ao sujeito transmitidos por seus antepassados, de forma sub-reptícia, inconsciente, predominantemente averbal, até porque de antepassados que sequer conheceu, às vezes muito remotos no tempo. Esta transmissão inconsciente de códigos comportamentais e de destinos foi, de certo modo, reconhecida por Freud como fenômeno natural da psiquê humana. Disse Freud no Capítulo V10 (vide página na bibliografia) de seu livro "Esboço de Psicanálise", uma de suas últimas obras, que "os sonhos trazem à luz um material que não pode ter-se originado nem da vida adulta de quem sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-los parte de uma herança arcaica que uma criança traz consigo ao mundo, antes de qualquer experiência própria, influenciada pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a contrapartida deste MATERIAL FILOGENÉTICO (o grifo é meu) nas lendas humanas mais antigas e em costumes que sobreviveram. Dessa maneira, os sonhos constituem uma fonte da pré-história humana que não deve ser menosprezada". Aqui vemos com clareza que Freud reconheceu o fenômeno da transmissão de códigos inconscientes comportamentais, transgeracionais e sócio- culturais entre gerações que sequer tiveram contato temporal, mas também podemos notar, com igual transparência, seu erro teórico crasso, absurdo para os conhecimentos da ciência atual. Para Freud, a gravação da memória de costumes, lembranças e códigos comportamentais a nós transmitidos por nossos antepassados seria filogenética, isto é, repassada das vivências de gerações antigas para e pelo DNA. O pai da psicanálise não estava sozinho ao pensar assim em sua época (Jung também)4. A Lei da Herança de Caracteres Adquiridos, da Teoria da Evolução de Lamarck3 (na bibliografia) ainda tinha adeptos, incluindo-se a Teoria da Degenerescência, que Freud abraçou em sua obra, embora timidamente; e entre os adeptos de Lamarck estava Freud, que se opunha à Teoria da Evolução de Charles Darwin, jamais abraçada por ele (embora Freud cite Darwin algumas vezes em sua obra, e lhe faça elogios, o que fez com a razão, Freud escreveu o nome de Darwin em sua obra como os católicos escreveram o nome de Pôncio Pilatos no CREDO: o nome está lá mas não tem nenhuma função: não há uma só interpretação nos casos clínicos de Freud ou uma só frase em seu oceano de insights contido em suas obras completas que tenham sido intuídos com matizes subjetivos da teoria darwinista. E isto tem uma explicação. A teoria darwinista jamais foi abraçada por Freud porque supostamente (até hoje) fere as escrituras sagradas judaicas. Freud era ateu, admirava Darwin com sua razão, mas por motivo afetivo jamais conseguiu se distanciar, inconscientemente (Memória dos Freitas) da cultura e da tradição judaicas, às quais foi sempre solidário, nos acertos e nos erros. Hoje, nem uma criança de ensino médio ou Freud se permanecesse vivo iriam aceitar explicações lamarckistas. Sou obrigado a abrir um parágrafo aqui porque desde 1991 tenho experimentado oposição na troca verbal de idéias com analistas vários, judeus e não judeus, por causa desta minha afirmação de que Freud abominava emocionalmente Darwin e se apoiava em Lamarck para (inconscientemente) proteger a cultura judaica. Já me chamaram até de anti-semita! Outros, menos radicais, dizem que não é verdade, que Freud adorava Darwin: prezados leitores, é só ler Ernest Jones1 na bibliografia e nas páginas que indico neste trabalho, o insuspeito Ernest Jones, para fazer calar estes insultos que venho recebendo há treze anos. Acho que o próprio Freud treme no túmulo cada vez que ouve um psicanalista argumentar estes horrores ortodoxos e dogmáticos contra minha descoberta. A investigação sobre a transmissão de códigos entre gerações, falada por Freud, nunca foi prosseguida (nem se fala nisso) pelos psicanalistas porque há muita ortodoxia e, pior, dogmatismo, mesmo entre os psicanalistas.

E logo dogmatismo lendo como “Bíblia” as palavras do pai da psicanálise, que nunca pediu rebanho e tinha horror de fanáticos-dogmatistas!

Ortodoxia psicanalítica ou dogmatismo psicanalítico = Memória dos Freitas dentro da própria Psicanálise. Quem foi mais heterodoxo com suas próprias idéias, insatisfeito com a primeira criou a segunda tópica, entre muitos outros exemplos foi o próprio Freud, o gênio que possibilita eu hoje estar escrevendo este artigo. Mas não imagina o leitor quão difícil é colocar este assunto, quanto sofrimento, quanta incompreensão tenho recebido. Mas não tenho como sucumbir ao dogma. Minha teoria pode ser refutada (e espero que seja) pelos critérios de Popper, epistemologicamente. Mas na base da ortodoxia psicanalítica, não. Até porque este não é o critério de refutar teorias. E estou convencido de estar com a razão. Por outro lado, no vácuo teórico deixado por Freud, os espíritas passaram a "explicar" esta "memória-de-vidas-passadas" com uma teoria tão absurda quanto a de Freud. A teoria dos espíritas é consensual, hoje, entre os "terapeutas-de-vidas-passadas" no mundo todo, e se alastram tanto quanto as diferentes seitas evangélicas Brasil afora, fazendo vítimas. Acreditam estes "terapeutas", todos espíritas, que no setting da seção de "terapia-de-vida-passada" almas do "outro mundo" encarnam-se no paciente, hipnotizado ou não, o que, então, para estes, explicaria suas lembranças de épocas remotas, anteriores ao seu nascimento. Claro, assim também não dá. Todavia o fenômeno, já notado por Freud, de reminiscências que o sujeito tem de fatos que antecederam a seu nascimento é um fato da natureza humana e tudo que é fato da natureza insiste em acontecer e reclama uma explicação. O que fiz ao nominar (criar) a noção de Memória dos Freitas foi refutar, de acordo com os critérios epistemológicos de refutação de Karl Popper, as duas teorias acima descritas, a de Freud e a dos espíritas, trazendo uma nova teoria que contradiz aquelas e oferecendo ao leitor os meios de refutar a minha própria teoria. O conceito e a constelação de proposições que compõem a Memória dos Freitas, porém, não se esgota aqui.

Na verdade, coloquei à frente este assunto da memória entre gerações não conviventes por seu apelo à atenção pública, mas este é apenas um assunto um tanto periférico de minha descoberta. Outros aspectos mais relevantes e mais importantes da Memória dos Freitas vou abordar no capítulo 2 deste ensaio, para dar uma folga ao leitor para respirar. Todavia, acrescento que as lembranças de fatos que ultrapassam no tempo a época do nascimento de pacientes, pelo que observo em minha clínica, não se referem somente a parentes ancestrais consanguíneos: podem ser do ambiente de uma família adotiva, o que sepulta de vez a hipótese de transmissão pelo DNA. E, ainda, estas lembranças podem ser interpretadas e decodificadas no setting da psicanálise4. A psicanálise, ao decodificar e interpretar a Memória dos Freitas, muda o destino, e não há cartomante ou vidente paranormal que possa prever o que virá a acontecer no futuro de um paciente bem analisado. Outras consequências de minhas descobertas, em parte publicadas neste primeiro capítulo e aqui em primeira mão, já que quando publiquei a 3° edição de meu livro4 ainda não havia percebido isso, é que só há indicação de psicanálise para aqueles que rompem pela esquerda com a Memória dos Freitas. É crueldade psicanalisar um paciente, mesmo neurótico, bem adaptado à Memória dos Freitas porque a psicanálise (se for bem feita) irá fazê-lo romper com a Memória e trará sofrimento para o paciente, muitas vezes sem a força criativa necessária para reordenar o caos que daí decorre, mesmo com auxílio do analista. A pobreza de espírito, a adaptação à mediocridade são, portanto, contra-indicações absolutas de psicanálise. Já os que rompem pela direita com a Memória dos Freitas - psicopatas, dementes, esquizofrenias com sintomas negativos (a hebefrênica especialmente), esquizofênicos cronificados, deficiência mental- a psicanálise é uma hipótese que deve ser definitivamente afastada: nessas pessoas não há como criar e reordenar o caos pelo insight e interpretações, provocando uma ruptura impossível pela esquerda com a Memória dos Freitas.

Para esses, terapias alternativas que não molestem o inconsciente são melhor indicadas. Outro desdobramento de minha descoberta, que eu não havia percebido ainda quando publiquei minha terceira edição4 é o de que nos psicóticos que rompem pela direita (esquizofrenia hebefrênica ou a forma catatônica da doença , psicoses cronificadas), nas demências que deles necessitem, só há dois antipsicóticos (neurolépticos) de segunda geração no mercado brasileiro que ajudam a tratar: a quetiapina -o melhor de todos- e a amisulprida. O haloperidol, bem como os demais antipsicóticos, mesmo os de segunda geração como a olanzapina, a risperidona, a clozapina, por exemplo, não só não ajudam a tratar como agravam estes quadros mórbidos. Isto a experiência empírica dos colegas poderá confirmar (embora eu não recomende que tentem doravante) mas é um fato clínico observado com rigor por quem escreve livros e artigos sobre psicofarmacologia desde 1981. No entanto, o haloperidol, os neurolépticos tradicionais e os demais antipsicóticos de segunda geração que não a quetiapina e a amisulprida são de valor e ajudam a tratar, com eficácia similar uns aos outros (a escolha deve ser feita apenas levando em conta os efeitos adversos) aos esquizofrênicos e demais psicóticos que têm sintomas produtivos (delírios, alucinações, predominantemente), como na forma paranóide da esquizofrenia, na mania, mas estes pacientes normalmente rompem pela esquerda com a Memória dos Freitas, e também nestes a psicanálise é normalmente bem indicada como psicoterapia, ou melhor, já que não é propriamente uma psicoterapia, como técnica de investigação do inconsciente, o que acaba sendo terapêutico. A psicanálise, nos que rompem pela esquerda, pode decodificar e interpretar a Memória dos Freitas e é a única via que conheço para modificar o destino porque joga um facho de luz nos porões da mente. Antes que em algum leitor suscite a idéia de que ao falar em romper pela esquerda e romper pela direita com a Memória dos Freitas a matéria tenha alguma raiz ideológica, pergunta que já me foi feita várias vezes, esclareço que não: em meu livro há um gráfico publicado com quadrante cartesiano de abscissas e ordenadas, com projeção em épura, no plano, da figura espacial que visualizei da Memória dos Freitas, no espaço, com o olho observador e projetor colocado em perpendicular (90 graus) relativamente ao plano cartesiano, colocado abaixo da imagem espacial, e sobre o centro da figura. Nesta projeção aparece a imagem plana da Memória dos Freitas centralizada no quadrante cartesiano. As doenças que mencionei como tendo rompimento criativo estão projetadas à esquerda da imagem central da Memória, e o rompimento destrutivo aparece projetado à direita. É pura Geometria Descritiva. É tal como acontece para se estudar um tórax: não se radiografa o pulmão em três dimensões, mas a épura (não deixa de ser épura) da figura espacial do pulmão que se quer estudar é vista no plano da radiografia. O mesmo vale para a tomografia, ressonância magnética: Seria difícil trabalhar com ressonância magnética de uma imagem espacial do cérebro, por exemplo. Temos de trazê-la para o plano, em épura.

CAPÍTULO 2

No capítulo anterior discorri sobre a memória de fatos ocorridos antes de nascermos, aprendida e apreendida desde o útero materno e após o nascimento na casa parental e no meio social que esta é inconsciente e impossível de evocar à consciência sem ajuda especializada, e que molda nosso comportamento cotidiano, crenças, erros e até acertos em nosso relacionamento com o próximo; ela é provinda de aprendizado averbal e informal, chamei-a de Memória dos Freitas e disse que o aspecto da reminiscência de fatos que precedem nossa data de nascimento dela faz parte. Mas afirmei que este é apenas um aspecto periférico de uma constelação de complexidades que formam a Memória dos Freitas, havendo outros muito mais importantes, embora tenham menos apelo à curiosidade humana. Mas sua utilidade e descoberta são uma nova aquisição da Ciência e devemos destes tomar conhecimento. Neste artigo vou revelá-los. O fenômeno foi primeiramente observado por Freud, mas a investigação paralisou porque este acreditava que a transmissão de memória entre gerações que não se tocaram no tempo era feita pelos gametas, isto é, pelo DNA, o que é uma teoria absurda. Freud tinha em seu entorno o campo cultural de uma época na qual o Lamarckismo era muito forte, embora a Teoria da Evolução, de Darwin, já fosse conhecida. Sabemos que Freud, escritor de "O futuro de uma ilusão” muito se distanciou , intelectualmente, das posições e dogmas religiosos, mas para ele o peso mítico deste aspecto evolucionista, por ser ele judeu, inconscientemente, foi-lhe intolerável de ser vencido, e ele não conseguiu distanciar-se, neste particular, AFETIVAMENTE, de sua cultura judaica, de tal maneira que este ponto afetivo tornou-se um ponto inatingido à compreensão do mestre. Vou aproveitar o conceito de ponto inatingido4 como marca da cultura e da tradição regional, familiar e pessoal inconscientes de cada um de nós, para explicitar a tradição a que chamei de Memória dos Freitas. O que chamei de Memória dos Freitas é, também, nossa instância mítica. E o que é um mito?

Os mitos são contos que não conseguimos desmentir, decodificar ou reduzir com o curso normal do pensamento e com a evocação da memória comum, já que não são conscientes. São relatos de origem popular, não reflexivos, na maioria das vezes retratando forças da natureza ou crendices tão ilógicas como onipresentes e atuantes em nosso cotidiano, escondidas no porão da mente: lobisomem, idéias de que olho grande e inveja de outros têm energia para nos trazer infortúnio (sem que consigamos enxergar o óbvio científico de que inveja não tem energia nenhuma, tanto na concepção da Física Clássica, de Newton, quanto na da Física Quântica2, e por ser um sentimento, apenas, e inerente ao sujeito que dela padece, e só faz mal ao invejoso). O raciocínio crítico sucumbe aos mitos, porque os mitos, sendo inconscientes, não são suscetíveis de exame pela razão e nem nela chegam, por mais inteligente e perspicaz que seja a pessoa. Estes são aprendizados inconscientes irracionais.

Posso dizer também que o mito é uma verdade que o indivíduo inconscientemente se acredita possuidor, que não é estabelecida pela razão. Sua decodificação é difícil, mas possível através da psicanálise, e a dificuldade é ancorada no fato de não podermos evocá-los à lembrança, em outras palavras, à luz do pensamento, e às vezes é difícil até mesmo decodificar seu próprio enunciado, que pode ser intensamente vivido pelo indivíduo, sem que este se aperceba sequer de como é que seu mito se enuncia. Como eu disse, os mitos são contos que não podemos desmentir, descumprir, decodificar ou reduzir pelas vias normais do pensamento, e têm um caráter universal, quer seja este universo a humanidade toda, a região, a família ou a própria subjetividade do sujeito (mitos pessoais). E agora? Digo que os mitos são contos e que há nesta sua transmissão, através das gerações, um aprendizado informal, e o leitor há de perguntar:

então quem conta esses contos? A esta pergunta vou responder com um caso clínico emprestado do próprio Freud, em cima de uma passagem de seu livro "Análise da fobia de um menino de cinco anos"5, o famoso caso do pequeno Hans. Logo na introdução, parte I do texto, conta Freud que Hans, aos três anos e meio de idade, foi visto por sua mamãe tocando com a mão no próprio pênis. Ela o ameaçou com as seguintes palavras: "Se fizer isso de novo, vou chamar o Dr. A para cortar fora o seu 'pipi' ". Como se pode perceber, esta curta história, tão universal, que se passou com Hans e sua mamãe - e todos nós já presenciamos mães e adultos repetindo esta mesma ameaça a crianças pequenas sem saber que estão propagando um trágico mito inconsciente - contém uma codificação inconsciente mítica, que a mãe de Hans nem conhecia de pleno teor o seu significado, codificação que a ela foi transmitida por seus ancestrais e que ela retransmitiu para o filho. Exatamente por não ter consciência do enunciado do mito que estava retransmitindo ao filho, o retransmitiu de forma incompleta e falseada. Na verdade, nem era o Dr. A que estava presente no inconsciente da mãe de Hans quando ela retransmitiu ao filho uma ameaça aprendida inconscientemente com seus próprios ancestrais. Este material, incompletamente verbalisado, deu a Hans munição para a formação de um de seus mitos, o mito da castração. Entre as lacunas que ficam naquilo que é transmitido pelas gerações anteriores, entre as lacunas daquilo que é retransmitido incompleta e falseadamente, entre as lacunas daquilo que o menino ou a menina podem apreender com as suas próprias palavras (único instrumento simbólico que dispõem para construir sua visão de mundo) e fantasias que encontram sobre o que observam em si mesmos e no mundo externo nascem os mitos, todos os mitos, estes tapa-buracos do pensamento humano. Os nossos mitos mais primevos e mais universais são as nossas protofantasias, a de sedução, a de castração e a da cena primária. São elas fantasias sobre a origem, e não fantasias presentes desde a origem (como imaginavam Freud, Jung e ainda muitos analistas hoje em dia, resíduos do Lamarckismo, que imaginava, dentro da psicanálise, que as protofantasias já vinham desde a origem, trazidas pelos gametas - DNA -) e que bom que são, na verdade, apenas fantasias criadas pelas representações simbólicas através de impressões e experiências inconscientes, e, portanto, fantasias que nós todos criamos como edificações simbólicas na ontogênese - desenvolvimento que depende da cultura-, pois se fossem fantasias herdadas pelo DNA (filogenéticas), como pensavam Freud e Jung, como poderia a psicanálise atenuar efeitos mitológicos desestruturantes?

Mitos desestruturantes tanto quanto mentirosos são os que as pessoas têm de que inveja e olho grande, ou ódio de outrem podem ter uma "energia" que faz mal ao indivíduo invejado. Este é apenas um exemplo, entre miríades. Se apelarmos para a razão e o conhecimento da ciência, os mitos cairão por terra ao primeiro exame:

Os mitos só servem à perpetuação dos dogmas e à manutenção do espírito de rebanho, geralmente provocam medo e têm a função social complementar às leis civis e religiosas, sendo mais poderosos que essas porque não são verbalizáveis, são impostos pela Memória dos Freitas e imunes ao raciocínio crítico e à liberdade de opinião, e têm como função primordial não permitir que o indivíduo mediano transgrida "normas" estabelecidas socialmente e, portanto, têm eficácia em impedir uma barbárie, ainda maior do que a que hoje vemos no Brasil e no Mundo. A descoberta da Memória dos Freitas e a possibilidade que aí se abre para jogarmos sobre esta, (que habita os porões da mente e cujos subprodutos assustadores, castradores, tirânicos, impositivos proliferam como fungos na escuridão), fachos de luz, permitem o alívio e a libertação de todos nós dos grilhões que nos tolhem os passos do crescimento, desfazem nossa ignorância sobre as verdades da natureza e ajudam no sentido de que a nossa vida seja mais produtiva, livre, descontraída e profícua, sem medos absurdos e irracionais. No presente, só uma minoria rompe com ela (a Memória dos Freitas) e não é por escolha, mas por desconforto, e quando rompe pela esquerda cria as obras que edificam o conforto e o progresso da humanidade: nós vivemos todos nas costas desses gigantes. A maioria das pessoas precisa ficar dentro dela, já que a civilização ainda não criou instrumento menos cruel para garantir à grande massa a necessária humanização sem usar instrumentos coercitivos: e não só da Memória dos Freitas precisamos para que não se saia cometendo por aí, Brasil e mundo afora, toda espécie de delitos, crimes, das maneiras mais horrendas: ainda precisamos de Código Penal, polícia, Forças Armadas!

A humanidade ainda está na pré-história do humanismo. Só os muito grandes de espírito percebem a coerção que a Memória dos Freitas representa e com ela rompem para criar. Mas se a humanidade toda rompesse, sem os mesmos recursos criativos desses super-homens, seria uma catástrofe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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8. Kant, I. - (1781). Critique of pure reason, in The Transcendental Doctrine of Method, N. Kemp Smith Ed., Capítulo II, seção 3, página 645, England, 1933.

9. Popper, Karl - A lógica da pesquisa científica, Ed. Cultrix, páginas de 46 a 49 e 106, São Paulo, 1989.

10. Poper, Karl - Conhecimento Objetivo, Ed. Itatiaia, páginas de 152 a 158, Belo Horizonte, 1975.

RESUMO

Este artigo contém a comunicação científica da descoberta de que há um duplo registro de memória na espécie humana. O segundo registro, ora comunicado ao meio científico, é desconhecido pela ciência e difere do que a ciência, a psiquiatria e a psicanálise conhecem e nominam como memória, até o presente momento. Tal conhecido registro é um dos registros de memória que tem o ser humano, mas o segundo registro que se distingue completamente do que hoje se conhece como memória, ainda é ignorado por estas ciências. A descoberta aqui publicada o foi à luz da Epistemologia.+

ABSTRACT

This article introduces a discovery of a double memory register in the human mind. The second memory register now discovered is until now unknown by science and has a different function from the first one well-known by science. They are not similar at all. This discovery is published here under lights of Epistemology.

RESUMEN

El articulo contiene la comunicación cientifica de descubrimiento de que hay dos y no solo uno registro de memoria en los humanos. El nuevo registro acá hecho en comunicación para la comunidad cientifica és desconocido por la ciencia, la psiquiatria, la psicoanalisis, y és muy diferente de lo que estas ciencias conocem con el nombre de memoria (esto derradero, és tan solamente uno de los registros de memoria en el hombre e ya se lo conoce bién) hasta nuestros dias. El articulo, como el descubrimiento, se hace acá descripto a la luz de la Epistemologia.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Ednei José Dutra de Freitas Rua São Francisco Xavier, 146 ap. 604 Tijuca Rio de Janeiro RJ Tel. (021) 22644355 20550-012 E-mail: edneifreitas@globo.com

*Ednei José Dutra de Freitas, Ph.D. é psiquiatra, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, ex-professor de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UERJ (RJ), Membro Titular da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES) e autor do livro Psicofarmacologia Aplicada à Clínica, 3° Edição, EPUB, Rio de Janeiro, 2000.

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