Quando a ditadura parte do judiciário: O extermínio da “rainha das provas”

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Nessa semana a revista Veja publicou uma matéria no melhor estilo JCO, tanto é que merece um destaque em nossas páginas, com as devidas observações técnico-jurídicas para que se demonstrem claramente a prática comum de abuso de poder praticado por nossos ministros, as aberrações e ilegalidades cometidas pela maior Casa de Justiça do país.

Acabou a lei.

No meio acadêmico jurídico criminal a prova pericial é tida como “a rainha das provas”.

É aquela prova que pretende trazer elementos de convicção sobre fatos que dependem de conhecimento especializado ou técnico. Ela é elaborada por peritos, que vão analisar determinada situação a partir de um conhecimento científico, técnico ou especializado.

Por essa razão, por ser produzida através do conhecimento científico, são dotadas de maior valor probatório. Em regra, obviamente, para se contestar uma prova pericial, só com uma contraprova, também pericial. 

Não é à toa que o Código de Processo Penal disciplina o procedimento probatório tecendo minúcias, pois é o coração da acusação, o lastro que referenda o juiz a absolver ou condenar um réu ao cárcere por anos a fio.

As demais provas são coadjuvantes.

Bem, assim determina a lei – assim são os ditames científicos absorvidos pelos nossos operadores do Direito desde o primeiro ano de academia – assim era o Brasil até o ano passado e assim funciona o resto do mundo democrático.

Já nas ditaduras o panorama é outro. Nesses países, existe a lei. Porém, os interesses obscuros do ditador e de seu governo se sobrepõem à legislação.

Em outras palavras: nos países ditatoriais, a legislação é interpretada e aplicada segundo a conveniência dos dirigentes da nação.

O povo que entenda o recado rapidamente e se adapte às mudanças – ou amargará dias sombrios nas prisões, sofrendo todos os impropérios inerentes ao cárcere e ainda as torturas físicas e psicológicas impostas pela máfia governante, que passa a observar aquele cidadão como uma ameaça à perpetuação do poder. 

Pois muito bem – concluam vocês em qual das duas situações o Brasil se enquadra nos dias de hoje: democracia ou ditadura?

Não faz muitas semanas as manchetes do país estamparam a suposta agressão ao filho do ministro Moraes no aeroporto de Roma.

Na sequência, um procedimento criminal foi instaurado para caçar e punir os brasileiros supostamente agressores e esse fato ocupou a grande mídia por dias consecutivos.

Agora começa o show de arbitrariedades e abuso de poder.

As imagens disponibilizadas pelo governo italiano à Justiça Brasileira não foram analisadas por um perito criminal, mas sim, por um agente policial.

Pode isso, Arnaldo? Não, não pode.

As imagens NÃO foram disponibilizadas ao público, tampouco vazaram para a imprensa, como aconteceu em tantos outros materiais - o ministro Toffoli, do STF decretou sigilo visando “proteger a privacidade e a segurança das partes envolvidas. Entretanto, o público teve acesso a frames, em que não dá para identificar o que ocorreu. Estranho, né?

O relatório da Polícia Federal sobre as imagens aponta que o filho do ministro foi alvo de uma “aparente agressão” consumada por um “aparente tapa”, com base na suposta “perícia” realizada por um policial.

O advogado da família supostamente agressora não teve acesso à suposta “perícia técnica”, o que agride frontalmente a legislação penal brasileira e o princípio da ampla defesa, basilar em processo penal.

Pode isso, Arnaldo? Não, não pode.

Os hipotéticos agressores são pessoas comuns, razão pela qual não possuem foro privilegiado, mas estranhamente o procedimento corre no Supremo Tribunal Federal, como se os futuros acusados possuíssem foro privilegiado tal qual um senador ou o presidente da República.

Onde está a determinação legal para isso? Estranho (de novo), né?

Isso significa dizer que os ditos “agressores” serão julgados pelo pares da vítima, que deveriam se autodeclararem suspeito para conduzirem e julgarem o caso, pela proximidade e estima com uma das partes envolvidas.

Pode isso, Arnaldo? Não, não pode.

O procedimento deveria ser processado por um juízo de primeira instância.

Como se não bastasse tudo isso, o presidente da Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF), emitiu uma nota protestando a escolha de um agente policial comum, e não de um perito, para proceder à análise do material – e virou alvo de uma perseguição implacável. Está respondendo a processo disciplinar.

Pode isso, Arnaldo? Não, não pode.

Diz a nota: “é preocupante que procedimentos não periciais possam ser recepcionados como se fossem ‘prova pericial’, uma vez que não atendem às premissas legais, como a imparcialidade, suspeição e não ter, obrigatoriamente, qualquer viés de confirmação, que são exigidas dos peritos oficiais de natureza criminal".

A instauração de processo disciplinar contra o presidente da associação em razão dessa nota foi determinada pelo diretor-geral da PF, por mais incrível que pareça – o número 1 da Polícia Federal.

Será que calou a boca de todos os demais peritos?

Será que serviu como lição para que não emitam opiniões técnicas sobre o assunto?

O recado do diretor da PF é que os peritos estariam ajudando a “defesa dos agressores”, ao pôr em xeque os métodos utilizados na investigação.

Pode isso, Arnaldo? Não, não pode.

A cereja do bolo é a autorização de Toffoli para que Moraes atue como assistente de acusação. Não existe previsão legal para esse desiderato. A figura do “assistente de acusação” existe no processo criminal, onde se estabelece o princípio do contraditório – e não na fase de inquérito policial.

Mas...

O que é a lei quando comparada com os poderes supremos dos nossos ministros, não é mesmo? A vontade e os interesses deles estão acima de tudo, inclusive da lei.

Na fase inquisitorial (como é chamada a fase policial), não vigora o princípio do contraditório. Isso porque o autor do crime não é acusado tecnicamente – ele não passa de um mero objeto de investigação, assim como todos os demais elementos do fato investigado. Contudo, pelo visto, no procedimento em tela parece que é diferente, pois já temos um assistente de acusação constituído – e pasme: esse acusador é a vítima e um dos ministros da Casa Suprema de Justiça do país – para onde ele trouxe o procedimento de forma ilegal.

Vale dizer que o Ministério Público opinou contra essa autorização para que um assistente de acusação funcionasse junto ao inquérito.

E para piorar, a assistência de acusação, que é uma função desempenhada por um advogado criminalista, está sendo realizada no caso concreto – por um ministro!

Pode isso, Arnaldo? É claro que não.

Esse caso revela o nível de arbitrariedade instalado na cúpula do judiciário brasileiro.

Vítima, acusador e juiz acumulados numa única pessoa.

Se isso não é ditadura da toga, qual o nome que se dá a essa aberração jurídica?

Foto de Carlos Fernando Maggiolo

Carlos Fernando Maggiolo

Advogado criminalista e professor de Direito Penal. Crítico político e de segurança pública. Presidente da Associação dos Motociclistas do Estado do Rio de Janeiro – AMO-RJ. 

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