A farsa continua

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A ‘história só se repete como farsa’. Esta conceituação, consagrada desde o século XIX e marcadamente ideológica, serve como uma luva para explicar algumas das transformações econômicas e sociais, em situações onde interesses escusos pessoais ou de determinados grupos se sobrepõem aos interesses da coletividade. Claro, sempre em nome das conquistas democráticas. Senão, vejamos.

Nos estertores do Estado Novo, eufemismo usado para denominar a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), começaram a soprar os ventos contrários ao seu governo discricionário na política interna e na externa, quando a aventura totalitária de Hitler chegava ao fim. Nos primeiros tempos do nazi-fascismo, setores influentes do governo Vargas demonstraram uma franca simpatia para com os regimes autoritários europeus, chegando inclusive à discussão de possíveis alianças.

Entretanto, tal desatino foi duramente combatido pela “voz rouca das ruas”, através da mobilização de estudantes e distintas categorias de trabalhadores identificados com o que se chamou de classes médias urbanas da época. O ponto agudo desta mobilização foi o impacto causado pelo ataque de submarinos alemães a navios na costa brasileira, com saldo de muitos mortos, versão que sofre algumas contestações de historiadores. A comoção estabelecida obrigou o governo a decretar guerra aos países do eixo, enviando pracinhas da Força Expedicionária Brasileira para os campos da Itália.

O retorno dos Pracinhas ao Rio de Janeiro em julho de 1945 aprofundou uma contradição interna no país. Deixando brasileiros mortos nos campos de batalha em nome de ideais democráticos, os Pracinhas regressaram a um país ainda sob regime ditatorial. Assim, uma combinação de fatos e fatores provocaram o enfraquecimento e o desmoronamento do poder e da política getulista.

Pressionado, Vargas promulgou uma lei constitucional que estabeleceu eleições presidenciais e uma Assembleia Constituinte, decretando ampla anistia aos acusados de crimes políticos desde 1934. Com a abertura democrática e mais algumas mudanças institucionais, organizaram-se 12 partidos, entre eles UDN, PSD, PTB, PSB e PCB.

A UDN, de radical oposição a Vargas, tinha em suas lideranças banqueiros e grandes empresários e contava como pré-candidato à presidente o brigadeiro Eduardo Gomes. Por outro lado, o PSD, visceralmente ligado à máquina estadonovista, apresentava como candidato o general Eurico Gaspar Dutra, cuiabano que desfrutou do apoio do próprio Getúlio. O PTB, representando a massa dos “trabalhadores do Brasil”, desempenhou o papel clássico do populismo getulista. E o PCB, finalmente na legalidade, lançou o engenheiro Yedo Fiúza que, curiosamente, teve uma votação muito expressiva na longínqua cidade da fronteira meridional mato-grossense, Porto Murtinho.

Mesmo diante da maré democrática, Vargas incentivou oficiosamente uma campanha popular para continuar no poder, usando sobretudo a imagem populista de “pai dos pobres” e benfeitor das classes trabalhadoras. O projeto continuísta ficou conhecido como “queremismo”, ou seja, “queremos Getúlio de volta” propondo, em síntese, estabelecer os trabalhos de uma assembleia constituinte e, somente depois, convocar as eleições presidenciais com o próprio Vargas como candidato, sob fortíssimo apoio popular, a uma espécie de “reeleição”. Pelo rádio, de alcance inigualável entre os grotões da sociedade brasileira à época, os comícios apoiados pelo PTB e pelo PCB eram transmitidos e fizeram muito sucesso. Mas as vozes que se fizeram ouvir mais altas e contrárias ao projeto queremista foram as dos quartéis e, sob pesada pressão militar, Vargas acabou renunciando e abortando o queremismo. Diga-se de passagem, não foi a primeira vez que o barulho dos quartéis foi contundente na vida política nacional, nem seria a última.

Se a história é implacável com os poderosos de plantão, a memória nem tanto. A ideia golpista de continuísmo viceja exatamente porque o Brasil é um país de desmemoriados. A cada aproximação de processos políticos eleitorais, assiste-se a uma enxurrada de propostas insensatas e oportunistas, com a recorrência da farsa e da tentativa de golpe.

Só para lembrar alguns dos exemplos mais significativos em tempos de avanços democráticos, em 1982 deu-se o prolongamento do mandato dos vereadores, de 4 para 6 anos, sob o pretexto de estabelecer a coincidência de mandatos. Outro caso de “repeteco” oportunista foi a mudança constitucional que criou o artifício da reeleição dos detentores do poder executivo sem a desincompatibilização dos respectivos cargos, beneficiando direta e escandalosamente o então presidente Fernando Henrique Cardoso, para constrangimento de muitos homens de bem. 

A partir de então, as práticas golpistas e espúrias da política brasileira ganharam mais e mais notoriedade, passando das páginas políticas dos jornais para as páginas do noticiário policial.

Uma outra vez em passado não muito recente, os bajuladores e serviçais do poder, tal qual moscas varejeiras, voltaram a rondar a carniça do continuísmo, plantando propostas de continuidade do governo petista, com Lula à frente. E, para não chocar a opinião pública com a indecência de um lançamento de terceiro mandato, atropelando escandalosamente a Constituição, os “soldados de partido” tiraram do baú empoeirado da história política a grande novidade do velho queremismo: quem disse que Lula não poderia permanecer no poder, se ele tem apoio cego e certeiro dos pobres do Brasil, beneficiados com as políticas públicas do chamado populismo de esquerda do PT? 

Apesar do noticiário nacional ter ressaltado na ocasião reações contrárias, e até pudicas, incluindo as falas do principal interessado, a ideia e a possibilidade do terceiro mandato consecutivo foram e ainda são altamente nocivas a quaisquer países democráticos. 

 O deputado Devanir Ribeiro (PT-SP) em ato de puro desatino e, muito provavelmente no intuito de obter seus 15 minutos de fama, chegou a apresentar um projeto de emenda constitucional permitindo a Lula o sonhado terceiro tempo. Não conseguiu nem ser original, já que se tratava de projeto antigo e arquivado. Outro destaque do baixo clero ficou por conta do deputado Fernando Ferro (PT-CE), sendo um pouco mais criativo, solicitou o desarquivamento de projetos no mesmo teor e (pasmem!) foi atendido pelo presidente da época da Câmara Federal, Arlindo Chinaglia (PT-SP). Isso ocorreu há dez anos atrás. No bojo da sandice, foi incluído em pauta o projeto do ex-deputado Inaldo Leitão (PR-PB) que permitia a reeleição no caso de cargos majoritários do executivo indefinidamente, com a ressalva da obrigatoriedade de licenciamento pelo menos 6 meses antes da eleição.

No instante em que essas matérias vieram a público, não apareceram mais candidatos para “amarrar o guizo no rabo do gato”. O presidente Lula, à época e do alto de sua sabedoria, interferiu no açodamento da peonada do partido e declarou (pra inglês ver) ser uma insensatez a busca de reformas constitucionais que permitissem mais de uma reeleição consecutiva, dizendo solenemente “não procurar sarna pra se coçar”.  Como trair e coçar é só começar, vigorou ainda a temporada de caça ao bom senso e à transparência política.

Segundo declarações da então senadora Marisa Serrano (PSDB-MS) a reeleição sem limites para cargos do poder executivo, em todos os seus níveis, não recebeu apoio da bancada federal de Mato Grosso do Sul. Menos mal. 

O que é preciso ficar bem claro em nosso tempo é que a democracia, com todos os seus defeitos e crises, ainda é a melhor forma de regime político, no qual deputado como esse tal de Ferro (com o perdão da piada) afirmou: “fui oposição muito tempo. Agora sou governo e gosto muito. Não pretendo mais deixar de ser. Desejo longa vida à oposição... na oposição”. Merecia ter sido julgado por atentado violento ao pudor ético e político.

Bem, meus amigos: para não dizer que nunca antes neste país se falou das flores da democracia, só aparecendo os espinhos (corrupção, cinismo e golpes de continuidade), a sociedade brasileira tem dado exemplo de esgotamento de sua paciência diante das farsas na história política brasileira. E, apesar dos pesares, isso é um sinal de vitalidade do combalido sistema democrático brasileiro.

O certo é que nenhum “salvador da pátria” farsante viverá para sempre. Mas que ainda existe, existe sim para nossa tristeza. Basta ver a tentativa do retorno da espúria proposta do voto fechado em lista para salvar os enrolados da Lava Jato.

Valmir Batista Corrêa

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Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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