O agiota não é mais aquele

09/04/2017 às 08:25 Ler na área do assinante

Duas figuras sempre povoaram as minhas memórias. Uma delas existia na pequena cidade em que me criei, mas o fenômeno ocorreu em todas as cidades deste território varonil. Em muitos lugares, dependendo do tamanho da população, não existia apenas um, mas inúmeros. Era a figura sinistra e execrada do agiota. Aliás, a agiotagem existe desde que o homem descobriu que podia viver às custas do desespero dos outros.

O agiota representava o duplo papel de salvador da pátria e de carrasco sem compaixão. Sabia atender com gentilezas, porém cobrava a dívida com mão de ferro e contava, muitas vezes, com a ajuda de “funcionários” sombrios e mal-encarados. Cobrava juros escorchantes e não tinha piedade de tomar bens materiais do devedor. Alguns agiotas tornaram-se poderosos e ricaços, acumulando contra si o ódio da comunidade. Entretanto, era visto como um mal necessário, em especial, para quem não tinha mais crédito na praça.

 A outra figura em questão, mais frequente nas grandes cidades e diferente do agiota representava uma chance aos endividados de alívio à pobreza: era o bicheiro. Fazer uma “fezinha” significava arriscar pequenas quantias em palpites muitas vezes revelados em sonhos, sob a forma de uma sequência numérica sorteada no jogo popular. O criador do famoso jogo do bicho foi um senhor de terras do Rio de Janeiro, João Batista Viana Drummond, o barão de Drummond, cujo título de nobreza foi recebido por libertar escravos antes da Lei Áurea. O barão inventou o jogo para arrecadar dinheiro para salvar e custear um zoológico carioca em dificuldades. Por isso, identificou os números do jogo com os bichos ali existentes.

O bicheiro que controlava a banca do jogo, mesmo sendo um contraventor pela legislação brasileira, passou a ser uma figura respeitada, fazendo trabalho assistencial em sua comunidade, melhorando as condições das pessoas carentes, onde era flagrante a ausência dos aparelhos estatais. Naqueles tempos, esta figura genuinamente brasileira, cercava-se de um batalhão de agregados e empregados. Muitos bicheiros tornaram-se sustentáculo do brilho das escolas de samba pelo Brasil afora, responsáveis pelo embelezamento dos carnavais de rua. Era o estereótipo do bom e bem-sucedido malandro.

Porém, essa figura arcaica e paternalista não conseguiu fazer frente à onda do tráfico de drogas e, praticamente, foi perdendo terreno no cenário da malandragem nacional. Essas figuras, entretanto, ainda resistem frequentando páginas policiais dos jornais. Basta ver o destaque na imprensa nacional dos bicheiros do Rio de Janeiro.

Surgiram novos tempos. O “malandro prá valer não existe mais”, como diz o samba do Chico. Agora o que impera é a malandragem oficial e oficializada. Assim como os clássicos bicheiros, os agiotas também sofrem pesada concorrência e estão em risco de extinção, perdendo espaço nas relações financeiras do dia a dia do brasileiro comum. A agiotagem, que era crime contra a economia popular, passou a ser hoje um bom negócio lícito. O alvo principal é o(a) velhinho(a) aposentado(a) ou pensionista, com a fama de pobre, porém bom pagador. Uma avalanche de comerciais nos meios de comunicação bombardeia a todo instante os incautos aposentados, com promessas maravilhosas, atraindo também a atenção dos seus dependentes, pois se sabe que muitas famílias pobres neste imenso país vivem às custas de aposentadoria ou pensão de seus velhos.

Pobres velhos que nunca antes neste país sofreram tanto. Primeiro, teve um ministro que obrigou os velhinhos a ficar na fila da previdência para recadastramento, debaixo de sol e chuva.  Agora, o apetite voraz dos novos agiotas (digo, financeiras), reinventa o ovo de Colombo: prometem emprestar dinheiro aos velhinhos com a garantia de desconto na folha de pagamento. E os ingênuos aposentados e pensionistas que caíram no conto do vigário “da hora” são tomados de assalto e espanto quando recebem seus contracheques, já minguados, menores ainda.

Outros espertinhos entraram na mesma jogada. Lojas de departamento, especializadas em vendas a prazo de eletrodomésticos, por exemplo, passaram a explorar esse novo nicho de mercado, tendo também como alvo os funcionários públicos, antigamente chamados de barnabés. A propaganda chega ao despudor de informar que o primeiro pagamento somente será descontado meses depois. Algumas delas dizem até que compram as dívidas anteriores dos seus clientes. Que bonzinhos, não? 

Esta orgia não para por aí: até pouco tempo atrás era possível comprar carro sem entrada e com dezenas intermináveis de prestações; podia-se comprar casas ou apartamentos em parcelas a perder de vista, para dizer somente algumas “maravilhas” deste mercado hipócrita, sem mencionar que nos preços finais estão embutidos juros pornográficos. Isso sem falar também nos custos estratosféricos do cheque especial, tão fácil de sacar e difícil de cobrir. Agora a maior tragédia é o cartão com crédito rotativo.

O resultado dessa farra geral, promovida pelo governo anterior ao presente, é um perigoso endividamento interno que faz a casa ruir a qualquer momento, e com muito estrondo e poeira.  Se no Brasil até a máfia esculhamba, como diz um humorista, só nos resta gritar como em outro samba do Chico: socorro, chame o ladrão, chame o ladrão!

Na outra ponta desta ciranda, o próprio Brasil do faz de conta já se transformou em um grande cassino. O jogo é ilegal, mas existe!  De todas as modalidades, porém, controladas pelo estado. Oficializou-se a malandragem no país em que a fezinha no bicho foi considerada contravenção desde os tempos do presidente Eurico Gaspar Dutra. Dutra e a hipocrisia reinante acabaram com o jogo e com o glamour do famoso Cassino da Urca e, com isso se foram as festas, os músicos e as suas belas coristas. Mas até hoje tramitam projetos no Congresso Nacional com propostas de liberação de cassinos, mais fortemente em balneários e cidades fronteiriças, sob a alegação de mudar o perfil socioeconômico de cidades como Bela Vista, Ponta Porã e Corumbá. 

Mesmo escamoteado, o falso moralismo e a hipocrisia reinante impedem a privatização dos jogos ditos de “azar”. Mas o Estado pode. E uma pergunta fica no ar: alguém sabe quanto o governo federal arrecada por semana do suado dinheirinho dos esperançosos apostadores na mega sena, loteria federal, e outros mais com o monopólio da Caixa Econômica Federal?

Perguntar não ofende.

Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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