Escândalo, Servidão e os Deuses brasileiros

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“E como dizem de Mitrídates, que foi se acostumando aos poucos ao veneno, aprendemos a engolir sem achar amargo o veneno da servidão.” (Discurso da Servidão Voluntária - La Boetie, p, 36). 

Inicio o texto com duas manchetes publicadas pelos sites e jornais neste 25/01/2024:

- “O Judiciário mais caro do universo”!

Gastos com tribunais de todo o Brasil são quatro vezes maiores que a média internacional, de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB). (O Antagonista).

- “Brasil lidera gastos com tribunais entre 53 países e despesas batem 1,6% do PIB”!

Valor é quatro vezes a média internacional; mais de 80% da verba vai para pagar magistrados e servidores. (Folha de S.Paulo).

Pensei que haveria protestos, discursos, repúdio, artistas e ativistas rasgando as roupas e afirmando que este fato é inconcebível.

Imaginei que a OAB, através de seus advogados iniciaria um movimento formidável para bloquear essa sangria dos cofres públicos.

Ponderei que os críticos que aparecem na TV todos os dias diriam alguma coisa. Os apresentadores de jornais, como Bonner, que afirmou que Lula é um homem livre, inocente, durante os debates eleitorais, estando condenado/descondenado a 12 anos de cadeia, diria algo ao país. Ou outros influenciadores tocariam no assunto revoltados.

Ajuizei que o Presidente da Câmara, do Senado, os lideres da situação e da oposição fariam discursos inflamados contra mais um escândalo dos muitos que acontecem todos os dias no Brasil.

Nada. Nadica.

Nenhuma palavra ou movimento sobre o assunto. Ninguém, sequer, analisou como chegamos a esse estado de coisas:

- “O gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo remuneração de magistrados e servidores, consome o equivalente a 1,6% do PIB (Produto Interno Bruto), um recorde entre 53 países analisados pelo Tesouro Nacional e quatro vezes a média internacional (0,4% do PIB).

Em termos absolutos, o valor gasto pelos tribunais em 2022 chegou a 159,7 bilhões de reais. Desses, 131,3 bilhões de reais foram destinados ao pagamento de remunerações e contribuições aos magistrados e servidores, o equivalente a impressionantes 82,2% do total.

Para se ter uma ideia do impacto desses valores, eles ultrapassam os 113 bilhões de reais investidos no programa Auxílio Brasil em 2022, que beneficiou cerca de 21,6 milhões de famílias, como destaca reportagem da Folha de S. Paulo.

O relatório destaca que a maior parcela dos gastos vem dos tribunais estaduais, totalizando 92,1 bilhões de reais em 2022.

Em seguida estão os tribunais federais, com 63,8 bilhões de reais, incluindo Justiça do Trabalho, Justiça Federal e cortes superiores como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF)”.

Notem que o STF é constituído por 11 pessoas, não são juízes, são Ministros-amigos-do-governante, indicados a cargos vitalícios e com poderes ditatoriais, pelo Presidente que está exercendo o cargo e todos são ratificados pelos senadores.

Os 11 Ministros do STF, Ministros do STJ, da Justiça do Trabalho, Cortes Superiores carcomem bilhões! 159,7 bilhões de reais.

Desses, 131,3 bilhões de reais são destinados ao pagamento de remunerações e contribuições aos magistrados e servidores, o equivalente a espantosos 82,2% do total.

Observem a comparação: 21,6 milhões de famílias brasileiras vivem na indigência. Receberam essas famílias como auxilio para sobreviver 113 bilhões em 2022. Se, hipoteticamente, cada família possuir 3 filhos, mais o pai e a mãe: 5 x 21,6 = 108,0. Assim, encontramos um total de 108 milhões de pessoas vivendo na indigência!

São 108 milhões de pessoas precisando de amparo! E elas receberam para sobreviver 113 bilhões de reais investidos no programa Auxílio Brasil em 2022!

O Judiciário brasileiro, sozinho, recebeu 159,7 bilhões!

O Judiciário brasileiro é mais importante do que 108 milhões de seres humanos, de pessoas, de brasileiros.

O Judiciário brasileiro precisa de luxo. De prédios majestosos, de pompa.

Os 108 milhões de pessoas anônimas, não! Casebres lhes bastam.

O Judiciário brasileiro precisa viajar, beber bons vinhos, morar em mansões, receber salários astronômicos, aparecer na televisão, inventar e ditar normas aos desfavorecidos.

Os 108 milhões, não, eles precisam apenas de migalhas para sobreviver.

Os “homens” do Judiciário brasileiro, amparados por 159,7 bilhões de reais, posam de deuses. Rasgam a Constituição, criam leis, inventam moda, fazem discursos para os pobres, prendem, processam, condenam, vão a outros países e explicam, com o coração “cheio de amor” e a cara lisa de cinismo, como o país deveria funcionar.

É a ditadura do judiciário amparada pelo executivo ou Lula-STF, a todo vapor, no dizer do jornalista Guzzo.

No ano de 1584, mais precisamente há 440 anos, um jovem francês de apenas 18 anos, Ettiénne de La Boétie, incomodado com a alienação, a miséria, a indolência e a falta de iniciativa do povo, escreveu um livro chamado “O Discurso da Servidão Voluntária”. Indagava La Boétie: porque os povos se submetem voluntariamente aos maus governos? E explicava: existem três razões que levam o homem à servidão voluntária: nascer na servidão, covardia, e a estrutura do poder.

La Boétie afirma que o costume ou o hábito é uma força mais forte que a natureza humana:, embora a natureza tenha uma grande força sobre nós, muito mais forte do que ela é o costume:

- “Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos a não ser o que encontram. Chegam finalmente a persuadir-se de que a condição de seu nascimento é a natural”. (La Boétie, 2017, p. 36).
- “Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito. [...] Os homens dizem que sempre foram súditos, que seus pais viveram desse modo. Pensam que são obrigados a suportar o mal, persuadem-se com exemplos e consolidam eles mesmos, com o passar do tempo, a posse daqueles que o tiranizam. Mas, na verdade, os anos nunca dão o direito de praticar o mal. Antes, aumentam a injúria”. (La Boétie, 2017, p, 41).

A segunda razão é tornar-se “covarde” sob a tirania ou mistificar a figura do líder :

- “Com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a valentia […]. Perdem também a energia em todo o resto, têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações. Os tiranos o sabem e, à vista deste vício, fazem tudo para piorá-lo”.

Por isso, seduzem os povos através de jogos, de maneira que, “assim ludibriados […], divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade igual […] à das crianças...

Além disso, o povo, por não ter acesso ao soberano, cria um “mistério” em torno da sua figura que o faz respeitá-lo sem nunca tê-lo visto. Por isso, o autor acha estranho os súditos se encherem de respeito e de veneração pelos tiranos, como se estivessem sob “o efeito de um encanto ou magia”, pois na verdade, “era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava”.

A terceira razão é a própria estrutura do poder, na qual “o tirano submete uns por intermédio dos outros”.

- “Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles.

Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros. Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano” […].

Desde a redemocratização doses de venenos de todos os tipos são servidas aos brasileiros, doses homeopáticas, doses como a que tomou Miltrides na frase que abre esse texto. Essas pequenas doses aumentam a imunidade da população, todos vão se acostumando aos poucos, aprendendo a engolir os venenos sem achar amargo, e lentamente eles se instalam em seus corpos, em suas mentes, suas famílias.

E os venenos são a roubalheira, a mentira, a covardia, a servidão, a falta de reação, o pensar que tudo sempre foi assim, nada vai adiantar... Até  ficar completamente imune a eles... Até não sentir nada... Até deixar se escravizar e amar a servidão.

Mas esse círculo de poder pode ser quebrado. Basta o povo querer se livrar dele. Quebrar o encanto, não temer o poder dos tiranos, não confiar em suas falsas qualidades, entender que tudo isso é atroz e desumano:

- “Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará”. (La Boetie, 2017, p, 15).
Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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