Nos países totalitários a lei é a vontade do ditador

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Num país normal, quando um juiz é vítima de um crime, reúne os elementos fáticos e probatórios e os encaminha ao Ministério Público, para que o membro do Parquet decida o que fazer.

Essa função é exclusiva do MP. Ele – e somente ele – pode entender se inicia um processo criminal contra o suposto autor do delito – ou não.

Se ele entender que há indícios suficientes de autoria e materialidade, oferece a denúncia. Se entender que o fato não constitui crime, arquiva. Se entender que o caso merece maiores diligências, determina que a autoridade policial complemente as investigações.

Nesse momento inicial do processo, quem manda é o MP, mas isso é num país normal.

No caso do Brasil, além da previsão legal estabelecida no Código de Processo Penal, o legislador constituinte de 88 entendeu que essa atribuição é tão importante, que mereceu um dispositivo exclusivo na Constituição Federal.

Num país normal, a Suprema Corte repreenderia qualquer um que atentasse contra esse princípio constitucional, pois sua função é justamente essa – ser a guardiã da Constituição. Mas isso é num país normal...

Nesses países, também chamados de democráticos, o juiz, desde o seu noviciado na judicatura na primeira instância, prima pela discrição, pela necessidade de uma imagem imparcial. Eles não emitem opiniões, não prejulgam, sob pena de serem declarados impedidos para julgarem determinados casos. O mesmo tratamento deve ser dispensado pelo juiz com relação às partes envolvidas. Se o juiz conhecer uma das partes ou seus patronos, deve se declarar suspeito para julgar o caso.

Isso evita, por exemplo, que um magistrado se beneficie de alguma forma, caso sua esposa seja advogada de uma das partes e receba expressivos e milionários honorários pela vitória da causa. Isso seria temerário, não é mesmo? Por isso os países normais (ou democráticos), vetam tais práticas.

Assim, num estado democrático, um magistrado que supostamente tenha sido vítima de delitos em outro país, ao chegar em sua terra natal, deve confiar na opinio delict do Ministério Público que é soberana e exclusiva.

O Brasil já foi assim.

Nos países totalitários pouco importa a lei – o que determina a legalidade é a vontade e os interesses do ditador. É lei aquilo que o ditador diz que é – se não era, passa a ser. O ditador tem poder de império. 

Num país democrático, mesmo que o cidadão esteja investido na função de ministro da Corte Suprema, se ele determina buscas e apreensões, colheitas de provas e produção de depoimentos, à revelia ou contra manifestação do Ministério Público, em suposta infração penal que tenha sido vítima, estará incorrendo em crime de abuso de autoridade, dentre outros.

Dedicamos especial atenção ao delito de abuso de autoridade, porque estamos falando de crime de ação penal pública incondicionada, cabendo ao Procurador Geral da República, nesse caso, a propositura da correspondente ação criminal, através da denúncia oferecida junto ao STF.

Nos países normais, o PGR que deixar de agir numa situação como essa, responde por crime de prevaricação. Mas isso é nos países normais...

Vamos levar a nossa imaginação a um nível surreal?

Vamos imaginar que além de cometer todas essas aberrações jurídicas contra a moral e a ética, o bom senso, os princípios gerais do Direito, o devido processo legal e contra e estado democrático de Direito, os fatos investigados não constituíssem delito algum. No final, os fatos que foram guardados a sete chaves, não eram criminosos – não configuravam nenhum crime – quantas infrações penais mais sérias teria esse juiz cometido num país normal, democrático?

À primeira vista, além do abuso de autoridade, esse cidadão teria praticado crime de constrangimento ilegal, invasão de domicílio, stalking (hoje previsto no art. 147 A do Código Penal), injúria, calúnia e difamação.

Nossa! Num país sério esse mau elemento estaria bem enrascado – só por esse caso. Sem falar na indenização que toda a família faria jus. Perdas e danos à imagem, lucros cessantes. No Direito desses países sérios, onde o que vale é a lei, todo dano causado a alguém é recompensado na forma de pecúnia. Num país normal a indenização quebraria o caixa desse criminoso travestido de juiz que subverte a lei, pois a reputação dessa família teria sido assassinada e achincalhada.

Num país ditatorial ou totalitário, ainda que os fatos que teriam dado ensejo às buscas e apreensões ilegais não constituíssem crime e se revelassem atos autoritários ao extremo, seria o mesmo que nada, pois a lei é criada, interpretada e aplicada pelo ditador. Lembra? O ditador é a lei. 

Nos países assim, essas imagens seriam enterradas pra sempre, com o conluio da grande imprensa.

Deve ser terrível viver num país sob ditadura...

Foto de Carlos Fernando Maggiolo

Carlos Fernando Maggiolo

Advogado criminalista e professor de Direito Penal. Crítico político e de segurança pública. Presidente da Associação dos Motociclistas do Estado do Rio de Janeiro – AMO-RJ. 

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