DaMatta, o celebrado sociólogo, confunde Pornochanchada de Madonna com Show Celebratório - Uma desconstrução

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“Nada se pode dizer de tão absurdo que já não tenha sido dito por algum filósofo”. (Cícero - século I a.C.).

Roberto DaMatta, um dos mais celebrados sociólogos do Brasil, autor de dezenas de livros, professor universitário, escreveu um texto no Estadão intitulado “Madonna: entre o sagrado e o profano, a celebração da liberdade”. Nele exalta Madonna como uma deusa, tece loas à sua performance e destaca o ineditismo do show que profana símbolos cristãos. 

Vou desconstruir seu texto e mostrar que a “The Celebration” exaltada por DaMatta não passa de uma comédia de segunda categoria cercada de luzes por todos os lados. Em caracteres itálicos o texto de DaMatta. Em escrita normal a desconstrução. E assim ele inicia seu texto:

-"O show celebratório de Madonna no Rio faz com que eu a invoque em um manto. Pois, tal como uma deusa - as Senhoras Virgens Imaculadas me perdoem -, Madonna é uma versão pós-moderna, planetária, digitalizada e extravagante do paradoxo do par sagrado/profano. Assim, o show dos 40 anos de carreira da cantora-profeta e messiânica reuniu uma multidão de fanáticos, admiradores e curiosos. Foi, à sua maneira, um hiato neste vale de lágrimas."

Diferente de DaMatta, penso que  o show de Madonna, invoca o homem-massa de nossa época. O homem que foi sabotado em sua individualidade por obra de um continuo processo de massificação, capitaneado por intelectuais de todos os matizes, entre eles DaMattta,  que falsearam a arte e implantaram em seus cérebros conceitos enganosos de beleza e santidade. Basta ver o celebrado pseudo-artista Andy Warhol, apresentado como “artista revolucionário” em todas as Universidades modernas, ao exibir um vaso sanitário e afirmar:

- “A arte é aquilo que você consegue passar por arte”.

Assim como DaMatta invoca Madonna em um manto sagrado afirmando que ela é uma “versão moderna do paradoxo do par sagrado/profano”, chamando-a de cantora-profeta e messiânica, Andy Warhol ao mostrar o vaso sanitário como arte, mostra também um par, um paradoxo cocô/necessidade. Confunde-se um objeto que recebe dejetos humanos com arte e a vontade de esvaziar o estômago, conhecida popularmente pelo termo chulo “cagar”, e em cima desse paradoxo: “inundar ou não o mundo de fezes”, cria-se uma teoria. Assim, como fez Andy Warhol, a santa Madonna carregando seu manto de excrementos encheu a mente de DaMatta e de seus seguidores. Sua celebração abarrotou de orgulho os admiradores. Sua apresentação foi, não “um hiato neste vale de lágrimas”, mas sim, uma puxada ou um apertar de botão no vaso sanitário, despejando sobre todos os admiradores o que há de mais nefando no mundo moderno.

- “Não me espantou o estilo apocalíptico do show, que me fascinou com a avassaladora presença da mulher e da fusão dos gêneros, exibidas numa estética de erotismo antipuritano que, entre nós, surge no Carnaval. Nos seus bailes e desfiles, nos quais o “pecado” mostrava seu lado glorioso, estava parte da condição humana; aquilo que, no caso dessa Madonna, surge com um claro estilo americano, pelo idioma e pela bizarra dramatização ianque - segundo a qual vale a pena acreditar nos sonhos, como disse a Nossa Senhora Madonna em seu sermão inicial”.

Só na mente de gente retardada entra a comparação do apocalipse com um show de Madonna. O que se passou ali foi um elogio ao sexo-animal, não estética, mas incentivo à prostituição e cenas comuns encontradas em qualquer lupanar, disfarçadas por luxo, luzes, roupas e cores. A presença da mulher, segundo DaMatta, fundindo gêneros, prostituindo-se com ambos os sexos, coisa que aparece apenas no carnaval, não é sinônimo de liberdade, mas de promiscuidade. Aqui não há um lado glorioso, mas um delírio dos sentidos, soltos, sem amarras, como qualquer cadela no cio. Diz o autor que isso é parte da condição humana. Não, isso é parte da condição animal. Dar vazão a todos os sentidos, a qualquer vontade, a todos os delírios insanos é próprio dos animais, não dos humanos. E é neste ponto que reside o dilema: a arte moderna serve a homens ou a animais? Nossa Senhora Madonna trouxe seu manto de estercos, despejou sobre seus seguidores e preencheu todos de alegria. Não vale a pena acreditar nesse pesadelo. É preciso começar a desmontar esse circo fétido e espantoso.

Madonna se apresentou em Copacabana para mais de 1,5 milhão de pessoas em show que encerrou a The Celebration Tour. E continua o autor do texto:

-“Não exagero ao perceber sincronia entre celebridades e santidades. Pois, como os santos, as celebridades são a ponte entre o trivial e o que é fora do comum, o milagre. Madonna é prova de saída, de êxito, dessa substância das celebridades”.

Madonna é santa porque é uma celebridade. É essa a sincronia que o autor percebe entre Madonna e os santos. Aqui tenta-se encobrir o sucesso mercadológico de Madonna (celebridade) com santos que fazem milagres. Para o autor os dois são iguais. Vejamos isso. Os milagres feitos por Jesus pediam sigilo. Não estavam envoltos em luzes. Não pediam propaganda. Os milagres feitos pelos santos também seguem o mesmo padrão: simplicidade, singeleza, fé. Santa Madonna é santa porque teve êxito, alcançou um milagre que é maior que todos os santos: o sucesso terreno! Envolta em luzes, dinheiro alto e muita propaganda, a santa Madonna de DaMatta está a milhares de quilômetros de distancia dos santos católicos. Sua profanação da religião cristã não lhe confere nenhum atestado de êxito, muito menos é prova de que ela pertence ao seleto grupo que detém substancia divina.

- “Em sociedades igualitárias, as celebridades não precisam do você sabe com quem está falando. Elas são celebridades justamente porque dispensam apresentação. Toda celebrização suscita uma busca de transcendência. Pois o célebre é celebrado justamente por alguma excepcionalidade. A distinção é de tal ordem que, ao vê-los, não acreditamos estar diante desses deuses vivos que têm o direito de tudo fazer. No caso de Madonna, pela coragem de romper com valores tabus da cultura das nossas tradições. Você sabe que é celebridade quando, num palco - mas não num púlpito, palanque ou sala de aula, você pode romper com todos os costumes, invertendo carnavalescamente interditos sagrados. A exibição desafiadora e corajosa do tabu promove cura porque reitera a liberdade. Liberdade que nos livra da culpabilidade dos penosos e absurdos deveres que legitimam guerras”.

As sociedades igualitárias são sempre dominadas por tiranos. Os tiranos não são celebridades. São homens desprovidos de qualquer sentimento de humanidade e que tomaram o poder quase sempre banhados em rios de sangue. A permanência do tirano, seu domínio, depende sempre do uso da força. Dispensam apresentação não porque são celebridades, mas porque matam as pessoas que não pensam iguais a ele, que não comungam de seus sentimentos. A experiência comunista de tornar sociedades igualitárias foi um retumbante fracasso que deixou para a posteridade 100 milhões de mortos que não quiseram ser iguais. Jamais existirão sociedades igualitárias. Homens e mulheres são todos diferentes. Basta ver suas impressões digitais.

Diz o autor que o show de Madonna busca “transcendência”, isto é, ela é divina e explicando melhor o conceito: “ultrapassa radicalmente a realidade sensível, e com a qual mantém, em decorrência de sua perfeição e superioridade absolutas, uma relação de soberania e de distância”. Ou como querem os sistemas filosóficos chamados de “fenomenologia” e “existencialismo”, ação por meio da qual a existência humana ultrapassa a sua realidade imediata, alcançando o mundo objetivo, a temporalidade inaparente (o passado e o futuro) e a liberdade.

Assim o autor, tentando implantar uma filosofia ao quadro do show, afirma que a “distinção é de tal ordem que, ao vê-los, não acreditamos estar diante desses deuses vivos que têm o direito de tudo fazer”. Para o autor, estando em cima de um palco, obtendo sucesso, o ser humano tem o direito de tudo fazer. Torna-se um deus. Sua liberdade é infinita, corajosa, desafiadora e livra todos aqueles que alcançaram o sucesso de culpa. Não há deveres para os que alcançam o sucesso, apenas prazeres. Dessa forma é prazeroso virar o mundo de cabeça para baixo ou “você pode romper com todos os costumes, invertendo carnavalescamente interditos sagrados. A exibição desafiadora e corajosa do tabu promove cura porque reitera a liberdade. Liberdade que nos livra da culpabilidade dos penosos e absurdos deveres que legitimam guerras”.

Notem que para agir assim, repito, é preciso ter sucesso. Assistir Madonna, segundo o autor, é sair curado. E porque você assistiu ao show e saiu curado, Santa Madonna realizou um milagre. Retirou de todos aqueles que participaram do show de profanação dos símbolos cristãos, exaltação à prostituição, luzes e cores, a culpa e os deveres. E esse milagre deu a cada um a liberdade plena de fazer o que quiser, irresponsavelmente, assim como a santa de araque e seu admirador DaMata professam.

Da milagreira Santa Mandona, em sua infinita bondade, não se ouviu uma única palavra de consolo aos que estavam se afogando no Rio Grande do Sul, vítimas da “bondosa natureza” que nos cerca. Isto também é um ato de liberdade sem culpa, sem deveres. Afinal os deuses, assim como Madonna, decidem quando devem se compadecer dos tolos mortais.

Os que não participaram dessa pantomima viram apenas uma grande comédia sem graça. A celebração era uma pornochanchada. A celebridade uma velha caquética turbinada por botox e fantasiada de falsas verdades.

O fanatismo de DaMatta e o show de Madonna merecem outra explicação. E ela está no livro do sociólogo Frédéric Martel, chamado “Mainstream”, que mostra a “cultura do entretenimento” que substituiu quase universalmente aquilo que há apenas meio século se entendia por cultura, graças à globalização e à revolução audiovisual, é hoje em dia um denominador comum entre os povos dos cinco continentes, apesar das diferenças de línguas, religiões e costumes.

Destaco a explicação de Mário Vargas Losa:

-“No livro de Martel não se fala de livros — o único citado em suas várias centenas de páginas é O código Da Vinci de Dan Brown; a única escritora citada é a crítica de cinema Pauline Kael —, nem de pintura ou escultura, nem de música ou dança clássicas, nem de filosofia e humanidades em geral, mas exclusivamente de filmes, programas de televisão, videogames, mangás, shows de rock, pop ou rap, vídeos e tablets, bem como das “indústrias criativas” que os produzem, patrocinam e promovem, ou seja, das diversões do grande público que foram substituindo a cultura do passado e acabarão por liquidá-la.
O autor vê com simpatia essa transformação, porque, graças a ela, a cultura “Mainstream”, ou “cultura do grande público”, arrebatou a vida cultural à pequena minoria, que antes a monopolizava, e a democratizou, pondo-a ao alcance de todos; também porque os conteúdos dessa nova cultura lhe parecem em perfeita sintonia com a modernidade, com os grandes inventos científicos e tecnológicos da vida contemporânea.
A diferença essencial entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente, durar, continuar vivos nas gerações futuras, ao passo que os produtos deste são fabricados para serem consumidos no momento e desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca. Tolstoi, Thomas Mann e ainda Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, sobreviver a seus autores, continuar atraindo e fascinando leitores nos tempos futuros. As telenovelas brasileiras e os filmes de Hollywood, assim como os shows de Shakira,(e de Madonna - grifo meu) não pretendem durar mais que o tempo da apresentação, desaparecendo para dar espaço a outros produtos igualmente bem-sucedidos e efêmeros. Cultura é diversão, e o que não é divertido não é cultura”. (Mário Vargas Losa - A Civilização do Espetáculo - pág. 19/20).

Assim toda arte foi domesticada, planejada e calculada nos salões das grandes editoras e das grandes galerias de arte, a serviço da diluição das formas artísticas e da destruição de todos os critérios de valor. Afirma Ângelo Monteiro na obra “Arte ou Desastre”:

- “Com a descaracterização paulatina das artes e a homogeneização das ideias consolidam-se, ao mesmo tempo, a substituição da criação artística pela indústria do lazer e a retribalização da sociedade pelo proselitismo ideológico e pela massificação publicitária. Como veiculo principal de transmissão dos valores superiores de uma cultura, a língua é a vítima mais séria tanto da uniformização do pensamento quanto da progressiva eliminação dos símbolos mais significativos do mundo espiritual”. (Ângelo Monteiro - Arte ou Desastre, pág. 51).

Finalizando o texto, faz DaMatta um pedido:

- “Senhora Madonna! Protegei-nos com o vosso manto, que transforma o tédio em magia e a vida, em um show...”.

E eu também finalizo pedindo:

-“Senhor, afastai de todos nós essas celebridades que se disfarçam de seres divinos, criam realidades inexistentes divulgando-as como verdades, manipulam e banalizam nossas vidas, nos fazem vestir máscaras impedindo-nos de ver o mundo real, de distinguir o que essência e o que é aparência”.

Bom final de semana a todos.

Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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