Borges, o Realismo Fantástico e a Infâmia na Terra dos Papagaios

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“Não há esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que pensam”. (Hannah Arendt).

No livro a “Historia Universal da Infâmia”, Jorge Luís Borges narra a trama do “Tintureiro Mascarado Hákim de Mev”, um profeta que apareceu aos 120 anos da Hégira e 736 da Cruz, que os homens daquele tempo e daquele espaço apelidariam logo de “O Velado” (Mascarado). Nasceu no Turquestão, na antiga cidade de Merv. Segundo Borges um irmão de seu pai o adestrou “no ofício de tintureiro”:

- “Arte de ímpios, de falsários e de inconstantes que inspirou os primeiros anátemas de sua pródiga carreira”.

Assim profetizava Háquim sobre suas virtudes e como se tornou puro:

“Meu rosto é de ouro, mas macerei a púrpura e mergulhei na segunda noite a lã não cardada e embebi na terceira noite a lã preparada, e os imperadores das ilhas disputam entre si ainda aquela roupa sangrenta. Assim pequei nos anos de juventude e transtornei as verdadeiras cores das criaturas.
O Anjo dizia-me que os carneiros não eram da cor dos tigres; Satã dizia-me que o Poderoso queria que o fossem e se valia de minha astúcia e minha púrpura. Agora sei que o Anjo e Satã se desviavam da verdade e que toda cor é abominável”.

No ano 146 da Hégira, Hákim desapareceu de sua pátria. Encontraram destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Chiraz e um espelho de bronze.

No ano da graça de 1984, na América do Sul, o Brasil voltou a ter um regime democrático. Em 1985 assumiu um dos mais corruptos homens que a nação tem noticia: José Sarney. Sua vida de trapaças foi retratada no livro de Palmério Dória, ”Honoráveis Bandidos”.

Com Sarney tem inicio a “nomeação de deputados e senadores para determinados cargos, concessão de emissoras de rádio e TV e liberação de verbas para obras, por parte do presidente, e no apoio aos projetos pessoais de Sarney, por parte dos parlamentares - que logo formariam um grupo dentro do Congresso Nacional conhecido como Centrão”.

O Centrão continua existindo e atuando até hoje. O “honorável” Sarney também ainda está vivo e como o “Poderoso Chefão” dá as cartas influenciando tudo o que se passa no país.

No ano da graça de 1995, Fernando Henrique Cardoso, o esquerdista enrustido, assumiu o controle do Brasil e governou até 2002. Nesse período, o país cristão e conservador começou a ser desmontado por dentro. Surgia uma nova ideia de domínio do maior país da América do Sul: a nomeação de amigos progressistas para o cargo de Ministros de STF. Assim FHC nomeou alguns aliados. 

Em 2003, o papa da corrupção, Lula da Silva, continuou o serviço e nomeou amigos pessoais e um advogado do PT.  

Dilma e Temer, por sua vez, prosseguiram o aparelhamento. 

Temer nomeou Alexandre de Moraes, o “Grande Inquisidor”. 

Bolsonaro tentou equilibrar a balança e nomeou dois conservadores. 

Neste terceiro governo o homem que perpetrou o maior escândalo de corrupção do planeta, Lula da Silva, nomeou o próprio advogado para o STF.

De nomeação em nomeação, desapareceu o Supremo da pátria Brasil.

Em buscas vãs à procura do Supremo, pesquisadores encontraram destruídos restos de conhecimento, pedaços do caráter, a imponência no chão, o epiteto de guardião da constituição ridicularizado e um velho livro rasgado onde estava escrito: “faltou vergonha”.

No fim da lua de xabã do ano de 158, o ar do deserto estava muito claro e os homens olhavam para o poente em busca da lua de ramadã, que promove a mortificação e o jejum. Eram escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes. Gravemente sentados na terra, junto do portão de uma pousada de caravanas da rota de Merv, aguardavam o sinal. Olhavam para o ocaso, e a cor do ocaso era a da areia.

Do fundo do deserto vertiginoso (cujo sol dá febre, assim como a lua, o estupor) viram se adiantar três figuras, que lhes pareceram altíssimas. As três eram humanas e a do meio tinha cabeça de touro. Quando se aproximaram, viram que esta usava uma máscara e que os outros dois eram cegos.

Alguém (como nos contos d’As mil e uma noites) indagou a razão daquela maravilha. O homem da cabeça de touro usando uma máscara declarou:

- “São cegos, porque viram meu rosto”.

No ano lunar de 2013, vindo da defesa das pesquisas com células tronco embrionárias, defesa da equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis tradicionais, defesa da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, o advogado do militante da esquerda Cesare Battisti, condenado por assassinato e terrorismo na Itália, Barroso, foi indicado para o Supremo por Dilma Rousseff e sabatinado no Senado. Vestindo a cabeça de touro, que é associada à plenitude e resistência e usando uma máscara, defendeu o “ativismo judicial”. Disse Barroso aos senadores:

- “Quando o Legislativo atua, o Judiciário deve recuar, a menos que haja uma afronta evidente à Constituição. Quando o Legislativo não atua, mas existem interesses em jogo, o Judiciário deve atuar”.

Maravilhados os 81 senadores contemplaram o rosto do homem da cabeça de touro em sua crua realidade. O discurso ressoou em seus ouvidos como música celeste e vislumbraram, todos, as milhares de oportunidades que o discurso de Barroso lhes proporcionava: uma espécie de uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto. E o brilho da luz e o som do discurso tornaram os 81 senadores cegos, por detrás da máscara contemplaram o seu verdadeiro rosto.

O cronista dos abássidas relata que o homem do deserto (cuja voz era singularmente doce, ou assim pareceu por diferir da brutalidade de sua máscara) lhes disse que eles aguardavam o sinal de um mês de penitência, mas que ele pregava um sinal melhor: o de toda uma vida de penitência e de uma morte infamante.

E assim explicou Hákim, adestrado no oficio de tintureiro: arte de ímpios e de falsários como e por que havia desaparecido misteriosamente:

- Disse-lhes que era Hákim filho de Osman, e que, no ano 146 da Hégira, entrara um homem em sua casa e, após se purificar e rezar, tinha lhe cortado a cabeça com um alfanje e levara-a para o céu.

Sobre a mão direita do homem (que era o anjo Gabriel) sua cabeça estivera perante o Senhor, que lhe deu a missão de profetizar e inculcou nele palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas e lhe infundiu um glorioso resplendor que os olhos mortais não toleravam. Tal era a justificação da Máscara.

Quando todos os homens da Terra professassem a nova lei, o Rosto seria descoberto e eles poderiam adorá-lo sem risco — como já os anjos o adoravam. Proclamada sua mensagem, Hákim exortou-os a uma guerra santa — um jihad — e a seu conveniente martírio.

Os escravos, esmoleres, negociantes de cavalos, ladrões de camelos e magarefes negaram-lhe sua fé: uma voz gritou bruxo, e outra, impostor.

Então Hákim fez uma mágica sangrenta para que o povo acreditasse:

- “Alguém havia trazido um leopardo — talvez um exemplar daquela raça esbelta e sangrenta que os monteiros persas educam. A verdade é que rompeu sua prisão. Excetuando-se o profeta mascarado e os dois acólitos, o povo se atropelou para fugir.
Quando voltou, a fera tinha ficado cega.
Diante dos olhos luminosos e mortos, os homens adoraram Hákim e admitiram sua virtude sobrenatural”.

Os cronistas da Terra de Santa Cruz, também relatam que o discurso do “ativismo judicial” de Barroso foi muito mal recebido pelos pagadores de impostos, feirantes, caminhoneiros e brasileiros com mais de dois neurônios.

Assim como Hákim fez sua mágica sanguinolenta, as ações de Barroso e do “Inquisidor Moraes”, secundado por mais sete supremos que rasgaram a Constituição da Terra dos Papagaios e criaram cada um sua própria Constituição, interpretando as leis de acordo com sua vontades ideológicas, eles transformaram essas vontades em verdades absolutas.

Seus leopardos foram soltos através de ordens de buscas, de prisões e de condenações. Todos os acusados confessos do maior roubo do mundo, a lava jato, foram inocentados, apesar de devolverem parte do dinheiro roubado (bilhões) e confessarem os crimes. Viagens, palestras e mordomias caracterizam o Supremo atualmente. Suas frases mais abjetas são:

- “Perdeu, Mané”! (Barroso).
- “Todos se recordam que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF. O cabo, soldado, coronel estão todos presos, e o STF está aberto e funcionando”.(Moraes, o Inquisidor).

Os 11 Ministros estão deitados em sua redoma dourada.

Na mesa do Presidente do Senado repousam 53 pedidos de Impeachment contra os Ministros do STF. Os que têm mais processo são: 21 contra Morais, 17 contra Barroso, 5 contra Gilmar Mendes, 3 contra Toffoli, 2 contra Cármem Lúcia. Nenhum anda. A informação é do site Poder 360.

Cegos e fascinados estão os 81 senadores, pois contemplaram seu próprio rosto no rosto dos Ministros.

O historiador oficial dos abássidas narra sem maior entusiasmo os progressos de Hákim, o Velado, no Kurassan. Essa província abraçou com desesperado fervor a doutrina do Rosto Resplandecente, e tributou-lhe seu sangue e seu ouro.

(Hákim, naquele momento, descartou sua efígie brutal por um quádruplo véu de seda branca recamado de pedras. A cor emblemática dos Banu Abbas era o preto; Hákim escolheu a cor branca — a mais contraditória — para o Véu Resguardador, os pendões e os turbantes.)

No final da lua de rejeb do ano de 161, a famosa cidade de Nixapur abriu suas portas de metal para o Mascarado; em princípios de 162, a de Astarabad. A atuação militar de Hákim (como a de outro profeta mais afortunado) reduzia-se à oração em voz de tenor, mas elevada à Divindade a partir de um lombo de camelo avermelhado, no coração agitado das batalhas. A seu redor, silvavam as setas, sem nunca feri-lo. Parecia buscar o perigo: na noite em que alguns leprosos detestados rondaram seu palácio, ordenou que se apresentassem, beijou-os e ofertou-lhes prata e ouro.

Delegava as fadigas de governar a seis ou sete adeptos. Era dado à meditação e à paz: um harém de cento e catorze mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades de seu corpo divino.

Assim como Hákim, os ministros da Terra dos Papagaios, possuem dezenas de advogados-assessores que facilitam seus trabalhos e deixam espaços para suas viagens e mordomias. Tudo acompanhado de quase um bilhão de reais que é o orçamento oficial para a manutenção do STF e dos 11 ministros-deuses.

Eles não podem sair às ruas. Têm medo do povo. Não frequentam restaurantes a não ser que antes chequem suas listas.  Proíbem armas ao povo. Mas todos os seus guarda-costas andam fortemente armados. Ultimamente andam apenas em jatinhos particulares.

Assim como Hákim, nada parece atingi-los.

No princípio da cosmogonia de Hákim há um Deus espectral. Essa divindade carece majestosamente de origem, assim como de nome e de rosto.

A Terra que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e afirmam. O asco é a virtude fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha o profeta deixava livre) podem nos conduzir a ela: a abstinência e o excesso, o exercício da carne ou a castidade.

Noutro lugar corrobora: 

“Aqui na vida padeceis num só corpo; na morte e na Retribuição, em inumeráveis”.

O paraíso é menos concreto: 

“Sempre é noite e há piscinas de pedra, e a felicidade desse paraíso é a felicidade peculiar das despedidas, da renúncia e dos que sabem que dormem”.

Na doutrina dos profetas do STF o “ativismo judicial”, segundo Luiz Flávio Gomes, jurista, se distingue duas espécies: há o ativismo judicial inovador (criação, ex-novo, pelo juiz de uma norma de um direito) e há o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa, como é o caso do art. 71 do CP, que cuida do crime continuado).

Georges Abbud, no livro “Ativismo Judicial”, capitulo 6, analisa três propostas para contribuir no combate ao ativismo e sua fonte, a discricionariedade judicial. São elas:

a) reforço da posição normativa da teoria da decisão judicial;
b) preservação da autonomia do direito; e
c) respeito à legislação democraticamente instituída.

Nada disso interessa aos profetas-ministros que dominam a nação tupiniquim.

-“No ano 163 da Hégira e quinto do Rosto Resplandecente, Hákim foi cercado em Sanam pelo exército do califa. Provisões e mártires não faltavam, e aguardava-se o iminente socorro de uma coorte de anjos de luz. Assim estava quando um espantoso boato atravessou o castelo. Contava-se que uma mulher adúltera do harém, ao ser estrangulada pelos eunucos, tinha gritado que faltava o dedo anular na mão direita do profeta e que os demais careciam de unhas. O rumor grassou entre os fiéis. Em pleno sol, num terraço elevado, Hákim pedia uma vitória ou sinal à divindade familiar. Com a cabeça inclinada, servil — como se corressem contra a chuva —, dois capitães arrancaram-lhe o Véu recamado de pedras.

Primeiro, houve um tremor. O prometido rosto do Apóstolo, o rosto que havia estado nos céus, era de fato branco, mas com a brancura peculiar da lepra manchada. Era tão avantajado ou incrível que lhes pareceu uma máscara carnavalesca. Não tinha sobrancelhas; a pálpebra inferior do olho direito pendia sobre o pômulo senil; um pesado cacho de tubérculos comia seus lábios; o nariz inumano e achatado era como o de um leão.

A voz de Hákim ensaiou um engano final:

- “Vosso pecado abominável vos proíbe de perceber meu esplendor…”, começou a dizer.
Não o escutaram; transpassaram-no com lanças”.

No ano de 2024 do calendário gregoriano os habitantes da Terra dos Papagaios ainda não cercaram e nem arrancaram os véus recamados de pedras que cobrem os rostos dos Ministros do STF. Mas, com exceção dos 81 senadores, todos já descobriram as deformidades de seus rostos que eles afirmam serem resplandecentes. E já perceberam os dedos que lhes faltam nas mãos. Além das unhas que não existem nos dedos que sobraram.

Bom final de semana a todos.

Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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