A Cracolândia e a insensata guerra de liminares

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Da mesma forma que garantir a segurança pública é dever do Estado e direito de todos, também garantir a saúde da população é dever do Estado e direito de todos. Tudo igual, portanto. São duas premissas-obrigações inscritas na Constituição Federal (artigos 144 e 196). Mas o Estado não as cumpre e nem as presta. E quando diz que cumpre e presta, mente, porque o faz de forma capenga, improvisada e desastrosa.  Daí a razão da violência urbana. Daí o mais absoluto caos em que se encontram os serviços de saúde.

O Brasil está sem rumo. Seu povo enfermo. O Estado brasileiro, assim compreendido a União, os Estados federados e os Municípios, todos deveriam estar sentados no banco dos réus dos tribunais internacionais para serem rigorosamente punidos. E seus governantes levados aos cárceres para cumprir longos anos de prisão. E terem todos os seus bens confiscados e restituídos aos cofres nacionais a título de reparação dos danos.

Paul Duez (1888-1947), renomado jurista francês, assim enquadrou a responsabilização estatal, no tocante aos serviços públicos que devem ser prestados ao povo: o serviço existiu, mas retardou; o serviço existiu, não retardou, mas foi mal prestado; o serviço não existiu. Em qual delas o Brasil se encontra?. Em todas, é a resposta. São crimes-estatais que a Ciência do Direito denomina de "permanentes", porque não cessam.

Voltemos às "cracolândias", retrato doloroso e cruel da omissão estatal que se espalha por todas as capitais. Parece que João Dória, prefeito de São Paulo, decidiu buscar e encontrar solução.

Se não for para "limpar" ruas, praças e outros logradouros públicos, que Dória vá em frente. Nem é necessário obter antes autorização judicial para iniciar qualquer ação. Ninguém precisa pedir permissão à Justiça para prestar socorro e dar assistência a quem necessita, a quem está à beira da morte.

Essa "guerra" de liminares é insensata. Mas todo cuidado é pouco. Estrutura, inteligência, planificação, respeito e, acima de tudo, carinho e amor é que são importantes. Policiais militares e agentes da guarda municipal, nem pensar. Eles não são bandidos, delinquentes, nem criminosos. Eles são gente como a gente. Todos são prolongamentos de nós. Eles são enfermos. E como enfermos devem ser tratados. Se numa rua ou praça (ou em qualquer outro local) são encontradas pessoas baleadas, esfaqueadas, enfartadas, não cumpre a todos - e fundamentalmente - aos serviços médicos de assistência pública, acudi-los e levá-los aos hospitais, independente da vontade das vítimas?. Então por que não agir de mesmíssima maneira com os viciados em drogas?  

Essa é uma situação que a solidariedade humana fala mais alto. É o que prepondera. É o quanto basta para o Poder Público entrar em ação, sem delongas e sem prévia intervenção judicial. Vida e saúde da população é que são as prioridades, que são sempre incompatíveis com burocracias e formalidades.

Mas digamos, absurdamente e apenas como exercício de raciocínio, que a ação do Poder Público dependesse de previsão legal. Esta é que não falta. A própria Constituição Federal cobra e ordena a urgente e impostergável ação estatal (artigo 196). E se não bastasse a Magna Carta, temos o Código Civil Brasileiro, em vigor desde 11 de Janeiro de 2003 e que substituiu o de 1916, que veio inovar e expressamente incluir os "viciados em tóxicos" como  pessoas sujeitas à curatela (artigo 1767, nº II). Pessoas humanas e mentalmente incapazes, portanto. E se o "viciado" não tiver um parente, próximo ou remoto, para ser o curador (responsável jurídico) do parente "toxicômano", então que a curatela seja assumida pelo próprio Estado, através de suas curadoria especiais. Esta é uma inovação salutar que agora consta no artigo 72, parágrafo único do Novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015 e que, em boa hora, veio suprir uma lacuna do CPC revogado, que era de 1973. Diz o Novo CPC: "A curatela especial será exercida pela Defensoria Pública" (artigo 72, parágrafo único).

Vamos torcer para que o prefeito de São Paulo, João Dória, não recue e avance. Aqueles munícipes, nossos irmãos e filhos de Deus, pedem socorro. Continue empenhado, prefeito Dória. Cerque-se de quem sabe, de pessoas talentosas, inspiradas e dispostas a estender suas mãos ao próximo. As vicissitudes e os percalços da vida a todos atingem. Sem exceção. Feliz aquele que se preocupou com os pequenos, com os sem vez, sem voz e sem visibilidade. Avante, João Dória. Entre para a História. Do povo, terá o aplauso. Dos recuperados e que voltarão ao convívio social, o eterno agradecimento. E de Deus, o perdão por aquela grosseria que o senhor cometeu com aquela anciã ciclista. Ela lhe ofereceu um buquê de girassóis. O senhor recusou. Ela, então, colocou no painel do seu carro. E o senhor, irado, pegou o buquê, o atirou não chão da rua e foi embora.

Jorge Béja

Advogado no Rio de Janeiro

Especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne

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