As rugas de um filho reborn…

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Há mais de 30 anos, conversando com um amigo numa redação de jornal, estávamos falando sobre alguma situação descabida, bizarra ou aberração da nossa sociedade. O certo é que exclamei a ele: meu caro, a sociedade está doente! Ele olhou pra mim espantado, mas não disse nada. Imaginei que fosse se recompor da assustadora afirmação que fiz, e daí refletir sobre isso. Não sei se o fez…

Da minha parte, nunca me passou pela cabeça, nem nos meus piores pesadelos, que a doença a que me referi fosse capaz de chegar a algum extremo, atingindo nossa consciência, alcançando a insanidade. Jamais!

De lá pra cá, rodeado por apedeutas, com tantas obscuridades e superficialidades que nos assola ao longo do tempo, das esquisitices às crueldades, do fútil à sordidez, do sutil ao indigno, um silencioso meio de vida tomou conta das pessoas, e não a percebo de forma individual, mas, sim, coletiva. É como se fosse o ápice da loucura humana.

De um lado, a inteligência artificial; a arte do irrealismo. Do outro, a desinteligência real; a psicose. Entre eles, os sobreviventes, que ainda resistem e trafegam entre a lucidez e a pressão. A questão é: alguns ou muitos? É perceptível a dificuldade para se equilibrar nessa corda bamba que o mundo virou.

Nessa coisa que surgiu, num modismo incompreensível, de bonecos reborn, tanta coisa cabe para tentar entender essa transferência de personalidade humanista, que faz uma pessoa espelhar-se num boneco. Do lúdico experimentado por crianças, que nos é tão natural e sentido formador da cidadania, à performance adulta adulterada. É o adultério da natureza humana.

A percepção da realidade, diga-se, apenas no visual, que os tais bebês reborns remetem, pode simplesmente morar no inconsciente do coletivo e não na de uma pessoa enquanto ser humano. À medida que a aceitação dessa loucura é levada adiante por parte de vários grupos de pessoas, até independentes entre si, ou na sociedade como um todo, ela ressoa, ecoa e dá luz às suas ações, que as tornam incapazes de se autoperceber.  

Mas o que há por trás de tudo isso? Uns creditam aos interesses econômicos, outros à solidão e a perda da interação sentimental. É difícil fazer juízo do que está acontecendo. Alguém é capaz de afirmar que, de alguma maneira, o elixir da juventude pode estar sendo associado à “vida” deste boneco e à vulnerabilidade emocional de sua “mãe” ou “pai”?

Será que o tempo pode ajudar essas vítimas do avanço tecnológico e civilizatório? Sim, vítimas! E tudo regado pela insensibilidade moderna do egoísmo. Podemos agregar a essa engrenagem mental a falta de relação humana no trato do cotidiano, a cada dia, cada vez pior - já chegamos ao ponto de não conseguir falar e interagir com um ser humano para resolver coisas do cotidiano, só com voz eletrônica. Ou será que a falta de amor entre as pessoas é buscada num ser que não decepciona nunca? Eis o personagem que atende aos anseios do jeito que convém.    

O aniversário do bebê não será comemorado no dia que sua “mãe o pariu”, mas sim, pelo dia que a encomenda chegou pelos Correios, e a cada ano, o semblante de alegria estará presente no singelo sorriso da criança postiça. É garantido! A gestação, sabe-se lá de quanto tempo (mas garanto que não foi de nove meses), desenvolveu-se no útero dos laboratórios, corredores e bancadas frias de uma oficina tecnológica.

O chá de bebê renascido terá tudo que um bebé humano precisa, mas também haverá cochichos de curiosidade e entendimento pelos cantos; risadas respeitosas a la Mona Lisa, ali e acolá, tudo na mais santa paz, tal qual a ocasião exige. Ninguém será a voz destoante na cerimônia, pois poderá ser cancelado ali mesmo, ao vivo e a cores.

O tempo vai passar, o bebê não vai crescer um milímetro sequer, não vai engordar ou emagrecer um grama, não vai ter dentinhos nascendo, nem otite, dores de barriga e sua caca será inodora. Não conhecerá nunca a caxumba, a catapora e nem o sapinho. E não acordará ninguém na madrugada.

No fundo, a segurança da mãe ou do pai, ou de ambos, estará preservada, afinal, sabem que seu bebê disciplinado pelo nada, não vai enfiar o dedo na tomada, nem correr o risco de cair de uma sacada do 8º andar, muito menos se engasgar com uma pecinha pequena de seu brinquedo preferido. Seus bebês inocentados pela patente industrial, não sofrerão preconceitos homofóbicos e nem terão nomes neutros para se safar de incômodos e efeitos judiciais. Sob o ponto de vista da existência do bebê siliconado, não perceberão que o relinchar de um cavalo, o latido de um cachorro ou o mugir de uma vaca, se equivalem ao seu “coisinha linda da mamãe”.

E se ficar órfão de pai e mãe, entrará na fila de adoção? Ihhhh… 

Para o futuro, os pais não se preocuparão com bullying na escola, com a traição de seu amorzinho ou a surpresa de uma gravidez inesperada. Não precisarão recomendar o uso do agasalho em tempos de frio, nem de passar protetor solar na praia. Não vai deixar a luz acesa e nem ter a obrigação educadora de arrumar a própria cama. Não ouvirão reclamação de vizinho porque seu filho toca a campainha lá e sai correndo, e nunca ouvirão a expressão “não pedi para você me colocar no mundo!”. Seu boletim escolar nunca terá uma nota vermelha, até chegar na faculdade, e criar aflição para se colocar no mercado de trabalho.

E se os pais se separarem, terão padrasto ou madrasta?    

Mas terão problemas grandes pela frente, O neném realista pode ser sequestrado a qualquer momento… um vacilo, e lá se vai o rebento postal, e até seu carrinho de ninar, com bico, mamadeira, mantinha azul ou rosa, e seu sapatinho de tricô. Outro risco é perceber que o pimpolho foi estuprado no berçário. Se estiver descabelado já é um indício… nada como um exame de corpo de delito na criaturinha. 

Seu envelhecimento estará apenas na cabeça de sua tutora ou tutor. Imagino que todas essas sensações e ações residem na cabeça dos genitores. O ainda bebê, mesmo após décadas, nunca terá sofrido de depressão ou saberá o que é pagar uma conta, de boteco que seja. Não terá artrite, artrose, catarata, Alzheimer ou Parkinson. Nunca conhecerá uma bengala ou um andador.

Outros atores da coletividade a que me refiro no início (maníacos protagonistas e patrocinadores dessa fraude intelectual, emocional e cultural), se colocarão como irmãos, tios, padrinhos, gurus, psicólogos, educadores, enfim, formarão uma comunidade isolada da existencialidade.

Um recado aos incautos: a justiça poderá, um dia desses, reconhecer a maternidade e paternidade, aí já viu, né… àqueles com o bebê reborn no colo, terá que ceder seu lugar na fila e assento no ônibus.   

Posso ser louco também (por que não?), e não afasto a ideia de que o rebornzinho possa ser, na mesma figura, o filho, e como num passe de mágica, virar o neto, o bisneto e quiçá, trineto, de seus pais, depois avós, depois bisavós…

Sou muito louco!!!

Com o passar do tempo, os pais terão suas rugas reais e o bebê, não! As fotos familiares contarão essa história e serão testemunhas desse tempo.

As marcas do tempo no bebê tecnológico só serão visíveis pelo desgaste em seu material manufaturado e sujeiras mal cuidadas. As suas profundas rugas, não! Poderão contar sua vida, ali, na sua face.

E para não dizer que não falei das flores… graças a Deus, para um mínimo de alívio, nunca haverá manifestação em favor do aborto de bebês reborn!     

Foto de Alexandre Siqueira

Alexandre Siqueira

Jornalista independente - Colunista Jornal da Cidade Online - Autor dos livros Perdeu, Mané! e Jornalismo: a um passo do abismo..., da série Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa! Visite:
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