Quando o riso vira crime, a liberdade de expressão já está sob julgamento. O caso Léo Lins ecoa perigosamente o fanatismo de um mosteiro medieval.
Por trás da recente condenação do humorista Léo Lins pelo crime de discriminação esconde-se uma discussão bem mais profunda do que a simples legalidade de uma piada. Trata-se de uma batalha simbólica entre o poder e o riso — uma disputa tão antiga quanto a própria civilização, cujos ecos ressoam em obras literárias como O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Neste romance, a repressão ao riso é literal e mortal. No Brasil de hoje, é institucional e judicial, mas igualmente preocupante.
Em O Nome da Rosa, monges são assassinados por se aproximarem de um livro considerado perigoso: o segundo volume da Poética, de Aristóteles, que discorda sobre a comédia e o riso. A obra, perdida na história real, é imaginada por Eco como um tratado capaz de libertar a mente por meio do humor. Guardado secretamente em uma biblioteca-labirinto, o livro está envenenado — uma armadilha arquitetada pelo monge cego Jorge de Burgos, que acredita que o riso é mina o medo, e portanto, a autoridade da fé.
Curiosamente, Jorge é cego — assim como é cega a figura simbólica da Justiça. Mas enquanto essa cegueira deveria representar imparcialidade, no romance ela encarna o fanatismo e a negação do conhecimento. E na vida real? não ser dito, e punindo quem ousa transgredir?
Uma piada de Léo Lins pode não agradar a todos - e nem deve. O humor não tem a obrigação de ser confortável. Aliás, seu papel histórico é justamente o oposto: incomodar, desafiar tabus, fazer rir por conforto e reflexão. O problema não está em discursos regulares que claramente incitam a violência ou o ódio (algo que deve, sim, ser combatido), mas em expandir a censura sob a bandeira da proteção sensata, sem considerar o contexto artístico e o direito à provocação.
No romance de Eco, os sete monges mortos podem ser vistos como alegorias dos sete pecados capitais — luxúria, gula, avareza, ira, inveja, preguiçae soberba — todos monitorados e punidos sob uma moral austera e hipócrita. Da mesma forma, o Judiciário brasileiro, em casos como o de Léo Lins, parece se colocar como guarda de uma nova moral, onde qualquer tamanho discursivo pode ser julgado como crime, independente de sua intenção ou do espaço simbólico onde foi proferido.
A censura hoje já não precisa de fogueiras nem de veneno. Ela se dá por meio de decisões judiciais, remoções de conteúdo, intimidações legais. O que está em jogo não é apenas a liberdade de um humorista, mas o espaço da arte, do pensamento e da crítica social. Quando o riso passa a ser regulado pelo medo de processos, estamos, em essência, repetindo os erros de Jorge de Burgos: matar a dúvida, calar o debate, envenenar o espírito crítico.
O riso sempre foi um ato de liberdade. É justamente por isso que ele incomoda os que querem controlar o discurso. Não se trata de defensor o conteúdo de todas as piadas, mas de defensor o direito de que elas existem. Quando o humor vira crime, a sociedade já começou a aceitar o silêncio como virtude.
Estamos diante de uma nova forma de censura — menos barulhenta, mas não menos perigosa. Não há fogueiras, mas há liminares. Não há Index Librorum Prohibitorum, mas há decisões que apagam vídeos e condenam artistas. É uma censura pós-moderna, travestida de proteção legal, mas sustentada pelo mesmo impulso: controlar o que incomoda.
O humor, por definição, testa limites. Ele exagera, choca, ironiza. É desconfortável - e deve ser. Criminalizá-lo é o primeiro passo para institucionalizar o silêncio. A democracia, vale lembrar, não se mede apenas pela liberdade de votar, mas pela liberdade de rir - inclusive do que nos incomoda.
Quando a Justiça vem julgar piadas como crimes, a liberdade deixa de ser um valor coletivo para se tornar uma concessão condicional. E, como no mosteiro de Eco, somos levados de volta à escuta — onde o conhecimento é perigoso, o riso é venenoso, e a verdade é decidida por quem tem o poder de calar.
Mas quem define o que é pecaminoso? Quem decide o que pode ou não ser dito, rido, pensado? Quando o riso se torna crime, não estamos apenas matando o humorista — estamos matando o espírito crítico, a dúvida, o jogo intelectual, a arte de provocar a consciência adormecida.
A história do monge cego que envolve o conhecimento para impedir que o riso se repita, sob novas roupas. A diferença é que agora o mosteiro é virtual, as bibliotecas são plataformas digitais, e os inquisidores vestem togas e utilizam algoritmos. A censura, que ontem foi clerical, hoje é jurídica — mas continua movida pelo mesmo medo: o medo da liberdade, do questionamento e da gargalhada que desestabiliza.
A justiça deve ser cega – mas nunca surda ao som da gargalhada que desafia o poder.
Henrique Alves da Rocha
Coronel da Polícia Militar do Estado de Sergipe.