O Brasil atravessa um momento sombrio. A censura não chegou com fardas, nem com a cassação de jornais. Ela se instalou sob a toga, disfarçada por um discurso nobre e falso: o combate à desinformação. O Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o guardião da Constituição, pode se tornar seu principal violador. Em nome da defesa da democracia, ataca seu alicerce mais fundamental: a liberdade de expressão.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet, aprovado em 2014 após debate público, foi criado para garantir a livre circulação de ideias. Ele impede que plataformas sejam responsabilizadas por conteúdos de terceiros sem ordem judicial específica. Agora, o STF decidiu reinterpretá-lo de forma unilateral, sem passar pelo Congresso, permitindo que essas plataformas sejam punidas preventivamente, ou seja, antes mesmo de qualquer julgamento.
Essa mudança não é técnica. É política. Onze ministros não eleitos passaram a legislar por meio de votos, substituindo o debate democrático por imposições. É a velha censura, agora disfarçada de “regulação”, e o controle de narrativas sob o pretexto de “proteger a democracia”.
Não se trata de remover conteúdos criminosos como incitação à violência, pedofilia ou terrorismo já punidos pela legislação vigente. Trata-se de eliminar opiniões, piadas, críticas políticas, questionamentos. Tudo agora pode ser removido com base em um critério vago: o que é ou não “desinformação”. Um conceito fluido, definido conforme o clima político e a ideologia do julgador.
Como alertou o jornalista William Waack: “os togados que não foram eleitos instituíram, no lugar dos legisladores, as normas para a internet”. O Congresso já não faz a lei. O Supremo faz e define seus efeitos em reuniões fechadas, sem transparência, sem imprensa, sem sociedade civil.
Não se trata de um alerta hipotético. A censura já está em curso. Exemplos recentes são os jornalistas independentes que foram excluídos das redes sem justificativa clara; as postagens de parlamentares eleitos retiradas do ar por ordens judiciais sigilosas; os perfis de humor e crítica política banidos sob acusações genéricas de “desinformação”; e o Telegram ameaçado de bloqueio total por se recusar a entregar dados privados de usuários.
O Google cogita deixar o Brasil, temendo o ambiente jurídico hostil à liberdade de expressão. É uma escalada de controle típica de regimes autoritários, não de democracias constitucionais. O poder que deveria representar o povo e fiscalizar os demais se curva diante do Supremo. Muitos parlamentares nem compreendem o que está em jogo. Outros se calam por medo de serem os próximos alvos.
Na prática, o Legislativo perdeu sua função. Permitiu que o Judiciário invadisse sua competência sem resistência. Ao permitir que o STF legisle por votos e rasgue direitos fundamentais, o Congresso se torna cúmplice da censura institucionalizada.
Já não é possível fingir neutralidade. O STF age politicamente. Alinha-se a setores do Executivo, interfere em eleições, decide o que pode ou não ser dito não com base na Constituição, mas de acordo com interesses e alinhamentos ideológicos. Governa por meio de medidas judiciais aquilo que não conseguiu impor nas urnas ou no Parlamento.
A tese que o STF deve consolidar neste julgamento impactará todos os ambientes digitais: redes sociais, sites, comentários em portais de notícias, marketplaces, enciclopédias online. Tudo poderá ser removido ou bloqueado sem ordem judicial, com base em critérios subjetivos.
Estamos diante da maior ameaça à liberdade desde a redemocratização. Um país onde o cidadão só pode se manifestar dentro dos limites definidos pelo Estado não é livre. É uma ditadura informacional.
A liberdade de expressão não é um luxo; é uma trava contra a tirania. Quando se abre mão dela, todas as outras liberdades caem em sequência.
A recente fala de Cármen Lúcia classificando o povo brasileiro como “213 milhões de pequenos tiranos soberanos” revela a mentalidade autoritária por trás da retórica. É um insulto à soberania popular e uma inversão do princípio republicano, que afirma que todo poder emana do povo, e não de uma corte.
Justificar censura como “proteção ao debate público” é grave. O STF deveria proteger a liberdade de expressão, inclusive diante de opiniões incômodas ou ofensivas. Isso é o que diferencia uma democracia de um regime autoritário.
Rótulos como “combate à desinformação” ou “discurso de ódio” não justificam violar o devido processo legal, ignorar os limites constitucionais ou suprimir o pluralismo. Nenhuma Suprema Corte deve atuar como tutor moral da sociedade. Uma Corte apenas é legítima quando protege o povo, não quando tenta controlá-lo.
Carlos Arouck
Policial federal. É formado em Direito e Administração de Empresas.