A "conspiração suprema”: Como uma estratégia legal pode reconfigurar o poder no Brasil
21/10/2025 às 10:32 Ler na área do assinanteI. O Supremo como epicentro do poder
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal operou uma transformação silenciosa e profunda na arquitetura institucional brasileira. Deixou de ser o guardião constitucional que arbitra conflitos entre poderes para se tornar o próprio vértice do poder político nacional. Esta metamorfose não representa um desvio acidental, mas uma estratégia deliberada de reconfiguração do Estado — uma forma sofisticada de lawfare institucional conduzida por forças que transcendem a superfície visível da política e do poder.
A evidência mais recente dessa estratégia emergiu com a aposentadoria antecipada de Luís Roberto Barroso em outubro de 2025. Ele se aposenta aos 67 anos, quando poderia permanecer no cargo até 2033, abrindo espaço para uma nova indicação presidencial. Esta pode não ser uma decisão isolada, mas potencialmente a primeira peça de um movimento coordenado que pode incluir as saídas estratégicas de outros ministros, como por exemplo: Cármen Lúcia (71 anos: 4 anos de mandato restante); Edson Fachin (67 anos: 8 anos de mandato restante) e Gilmar Mendes (69 anos: 6 anos de mandato restante).
Se concretizado, este cenário permitiria ao presidente Lula indicar até seis ministros em um único mandato — algo sem precedentes na história democrática recente. Mais relevante: permitiria a formação de uma maioria jovem, ideologicamente alinhada ou representativa de interesses de poder, com potencial para dominar a corte por duas ou três décadas. Entre os postulantes estariam Jorge Messias; Rodrigo Pacheco e Bruno Dantas com possíveis 31 anos, 28 anos e 25 anos, de potencial mandato, respectivamente (apenas especulando sobre os nomes mais elencados, mas que não necessariamente, poderiam ser estes, visto que outros interesses podem influenciar o processo de escolha).
II. A engenharia do controle: Lawfare institucional
O conceito de lawfare — originalmente definido pelo jurista Charles Dunlap Jr. como "o uso estratégico da lei para atingir objetivos que tradicionalmente seriam alcançados por meios militares ou políticos" — ganhou no Brasil uma dimensão institucional inédita. O STF não apenas julga; ele investiga, legisla de fato, regula o debate público e exerce controle político direto sobre os demais poderes.
As manifestações concretas deste poder incluem:
• Inquéritos autoproclamados: O Inquérito das Fake News (INQ 4781), conduzido diretamente pelo STF sem participação do Ministério Público, estabeleceu um precedente perigoso de autoatribuição de poderes investigatórios, violando o princípio acusatório e a separação institucional entre investigação e julgamento.
• Judicialização preventiva: Decisões monocráticas que suspendem medidas provisórias e projetos de lei antes mesmo de sua tramitação completa no Congresso, esvaziando o debate legislativo e impondo uma tutela judicial sobre o processo democrático.
• Foro privilegiado como instrumento de pressão: A prerrogativa de julgar parlamentares transformou-se em mecanismo de contenção política. Parlamentares evitam confrontos diretos com o Supremo por receio de investigações que possam resultar em quebra de sigilo, busca e apreensão ou até cassação de mandato, além de processos judiciais próprios e de familiares.
• Controle sobre plataformas digitais: Decisões que determinam bloqueios, remoções de conteúdo e até suspensão de plataformas inteiras (como no caso do X/Twitter em 2024), com impactos diretos sobre liberdade de expressão e debate público, sem amparo legal claro ou proporcionalidade evidente.
Um estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) analisou decisões do STF pós-Lava Jato e identificou padrões que caracterizam lawfare: uso de argumentos jurídicos formalmente corretos para alcançar objetivos políticos substantivos, seletividade na aplicação de precedentes e timing estratégico de decisões com impacto eleitoral ou político.
III. A "porta giratória": Negociações invisíveis
A possível aposentadoria antecipada de ministros (como a que ocorreu com o Ministro Barroso) raramente ocorre por mero cansaço ou altruísmo institucional. Existe uma economia política invisível que sustenta essas decisões. Ministros que deixam o STF antes do tempo costumam encontrar portas abertas em:
• Escritórios de advocacia de elite (muitos dos quais são sócios diretos ou indiretos): Bancas que atuam em causas bilionárias perante o próprio STF, onde ex-ministros agregam valor não apenas por conhecimento técnico, mas por acesso privilegiado e compreensão íntima dos bastidores decisórios.
• Consultorias jurídicas internacionais: Organismos multilaterais, fundações e think tanks que oferecem posições bem remuneradas e prestigiosas.
• Circuito de palestras: Eventos corporativos, universidades e conferências onde ex-ministros recebem honorários que podem chegar a dezenas de milhares de reais por apresentação.
• Arbitragens internacionais: Painéis arbitrais que decidem disputas de alto valor, área onde ex-ministros do STF são especialmente valorizados.
Esta "porta giratória" não é ilegal, mas cria incentivos perversos. Um ministro que planeja sua aposentadoria antecipada pode calibrar decisões pensando em futuros clientes, ou aceitar acordos políticos que facilitem sua transição para o mercado privado. A discrição dessas negociações as torna invisíveis ao escrutínio público, mas não menos reais.
IV. O establishment como força motriz
A chave para compreender a reconfiguração em curso está em reconhecer que o Executivo não é o arquiteto desta estratégia, mas seu instrumento. Por trás das indicações presidenciais opera uma rede de poder que transcende governos: o establishment — uma coalizão fluida, mas eficaz de interesses econômicos, jurídicos, midiáticos e internacionais.
Este establishment inclui:
• Setores do sistema financeiro: Bancos, fundos de investimento e corporações transnacionais que dependem de previsibilidade jurídica e estabilidade institucional para operar no Brasil de forma privilegiada.
• Redes de influência jurídica: Grandes bancas de advocacia, associações profissionais e centros acadêmicos que formam consensos sobre "boa governança" e "segurança jurídica".
• Organismos internacionais: FMI, Banco Mundial, OCDE, ONGs e fundações ligadas a interesses globalistas, além de agências da ONU que pressionam por reformas específicas e modelos institucionais alinhados com suas agendas.
• Oligopólio midiático: Grupos de comunicação que moldam narrativas sobre "defesa da democracia" e legitimam a expansão do poder judicial como proteção contra "populismos" e "autoritarismos".
• Outros oligopólios e monopólios: Grupos que detêm domínio e controle de setores de grande impacto nas economias locais e globais.
• Políticos profissionais: que atuam nos bastidores, não raro, representando lóbis de interesses poderosos, locais ou transnacionais.
Para este establishment, um STF forte, autônomo e previsível é preferível a um sistema político fragmentado e imprevisível. A corte funciona como garantia de última instância: mesmo que o Executivo ou o Legislativo tomem rumos indesejados, o Judiciário pode conter, corrigir ou anular.
A estratégia não requer controle direto sobre ministros. Basta moldar o ambiente institucional, jurídico e midiático de forma que:
1. Indicações presidenciais recaiam sobre juristas já “socializados” nessas redes de influência
2. A narrativa pública legitime o ativismo judicial como "defesa democrática"
3. Custos políticos de confrontar o STF sejam proibitivos para qualquer poder
V. O legislativo sitiado
O Congresso Nacional tornou-se refém desta arquitetura de poder. Sua fragmentação partidária — o Brasil tem 23 legendas com representação na Câmara — e dependência de emendas orçamentárias (as chamadas emendas de relator, antes conhecidas como orçamento secreto) já o fragilizavam. Agora, enfrenta um STF que pode:
• Anular legislação aprovada democraticamente
• Investigar e processar parlamentares individualmente
• Legislar por omissão, criando normas onde o Congresso não atuou
• Criminalizar discursos e posicionamentos políticos sob alegação de "fake news" ou "antidemocráticos"
A PEC 51/23, que propõe mandatos fixos de 15 anos para ministros do STF, tramita no Congresso desde 2023 sem perspectiva de avanço. A proposta enfrenta resistência não apenas do próprio STF, mas de todo o ecossistema jurídico-institucional que sustenta o status quo. E há que se pensar: 15 anos, na velocidade dos nossos tempos, já poderia ser uma eternidade.
Paradoxalmente, o Congresso não pode reagir sem incorrer em riscos. Qualquer movimento mais assertivo pode ser interpretado como "ataque às instituições", gerando investigações, quebras de sigilo ou até inquéritos. O foro privilegiado, que deveria proteger parlamentares, transformou-se em espada de Dâmocles pendente sobre suas cabeças.
VI. A hipótese central: potencial estratégia em curso
Conectando os pontos, emerge uma hipótese perturbadora, mas plausível:
Estamos testemunhando uma estratégia coordenada de captura institucional do Estado brasileiro através do Judiciário. Embora as sementes desse ativismo judicial tenham sido plantadas pela própria Constituição de 1988 — que conferiu ao STF amplos poderes — o impulso definitivo veio com decisões emblemáticas como o reconhecimento da união homoafetiva em 2011 e, especialmente, o julgamento do Mensalão em 2012, marco que consolidou o protagonismo político da corte. Esta estratégia, que se intensificou nos últimos sete anos (e tornou-se visível apenas nos últimos quatro), opera em três camadas:
Camada 1: Renovação geracional estratégica
Aposentadorias voluntárias negociadas permitem que o presidente indique ministros jovens e alinhados com múltiplos interesses, garantindo maioria na corte por 20-25 anos, ou mais. Não é necessário que todos compartilhem exatamente a mesma ideologia; basta que operem dentro do mesmo paradigma de ativismo judicial e primazia do Judiciário a serviço do establishment. Nesse aspecto, tais indicações não passariam apenas pelo crivo presidencial.
Camada 2: Consolidação do Lawfare como prática institucional
Inquéritos autoproclamados, decisões preventivas e controle sobre discurso público normalizam-se, criando jurisprudência que amplia ainda mais os poderes da corte. Cada precedente torna-se degrau para expansões futuras.
Camada 3: Blindagem contra reversão
Uma vez consolidada, esta arquitetura de poder torna-se praticamente irreversível por meios democráticos. O STF pode anular qualquer tentativa legislativa de limitá-lo, investigar proponentes dessas reformas, criminalizá-los e controlar a narrativa pública sobre o debate.
O resultado final é um Estado onde:
• O STF não apenas interpreta a Constituição, mas a define dinamicamente
• Decisões políticas fundamentais são transferidas do âmbito eleitoral para o judicial
• A accountability democrática é substituída por accountability técnico-jurídica
• O establishment opera através do Judiciário para garantir previsibilidade independentemente de oscilações eleitorais
VII. Implicações e cenários futuros
Se esta estratégia se concretizar plenamente, o Brasil terá experimentado uma revolução institucional silenciosa — uma reconfiguração do poder “sem golpe" na acepção tradicional da palavra, sem ruptura formal, conduzida por meios legais e justificada por “narrativas de proteção democrática”.
Os riscos são múltiplos:
1. Déficit democrático estrutural: Decisões fundamentais tomadas por órgão não eleito, sem mandato popular e sem accountability eleitoral.
2. Judicialização total da política: Toda disputa política torna-se disputa jurídica, esvaziando a arena democrática tradicional.
3. Captura por interesses privados: Um judiciário poderoso, mas opaco torna-se alvo privilegiado de lobby corporativo e pressões internacionais.
4. Erosão da separação de poderes: O equilíbrio institucional desenhado pela Constituição colapsa, concentrando poder excessivo em uma única instituição.
5. Legitimidade em crise: Sem ancoragem eleitoral e com percepção pública de politização, o STF pode perder legitimidade social, criando tensões institucionais perigosas.
Quatro cenários são possíveis:
Cenário A - Consolidação hegemônica: A estratégia se completa. O STF torna-se o poder dominante. O Brasil opera como "democracia" formal com poder efetivo judicialmente centralizado. Estabilidade institucional alta, mas déficit democrático permanente.
Cenário B - Reação institucional: O Legislativo, sob pressão popular, consegue aprovar reformas limitadoras (mandatos fixos, controles sobre decisões monocráticas, fim de inquéritos autoproclamados). Conflito institucional intenso antes de novo equilíbrio.
Cenário C - Crise de legitimidade: A percepção pública de politização do STF atinge ponto crítico. Decisões perdem efetividade por falta de adesão social. Possível crise institucional com resultados imprevisíveis, como observado recentemente no Nepal — ainda que com peculiaridades diferentes, aquele país reagiu institucionalmente apesar dos partidos políticos terem perdido representatividade.
Cenário D - Reação internacional: Mudanças no cenário geopolítico global, particularmente com os Estados Unidos sob nova liderança, podem resultar em pressões externas via sanções econômicas, restrições a investimentos ou condicionalidades para cooperação internacional. O establishment, dependente de integração aos mercados e instituições globais, poderia recalibrar sua estratégia diante de custos proibitivos de manter um sistema judicialmente centralizado que afaste investimentos ou gere instabilidade regional percebida como ameaça por potências ocidentais.
VIII. Conclusão: A Democracia em jogo
A aposentadoria antecipada de ministros, as indicações estratégicas e a consolidação do ativismo judicial não são eventos isolados. São componentes de uma reconfiguração profunda do Estado brasileiro — uma forma sofisticada de lawfare institucional onde o Judiciário deixa de ser árbitro para se tornar jogador principal.
Esta transformação não ocorre por “imposição violenta”, mas através da lei, da institucionalidade e da narrativa de proteção democrática. Seu maior risco está precisamente aí: revoluções violentas geram resistência imediata; revoluções jurídicas são silenciosas até se tornarem irreversíveis — essa é, ao menos, a aposta dos atores por trás dessa estratégia.
O establishment que conduz esta estratégia não precisa de conspirações explícitas. Basta convergência de interesses, redes de influência sobrepostas e incentivos alinhados. O resultado, porém, é o mesmo: um Estado onde o Supremo Tribunal Federal não apenas interpreta a Constituição, mas a governa.
A questão que se coloca aos brasileiros é simples, mas fundamental: é desejável uma democracia onde o poder que emana do povo e é exercido por representantes eleitos, é “tomado” por uma juristocracia onde decisões fundamentais estão nas mãos de togados, em nome de uma racionalidade técnica que se pretende superior à vontade popular?
A resposta a esta pergunta definirá não apenas o futuro institucional do Brasil, mas a própria natureza de nossa democracia. E diante desses cenários, especialmente considerando as tensões geopolíticas emergentes, essa resposta pode estar sendo forjada neste exato momento — não nos tribunais, mas na interseção entre pressões domésticas e reconfiguração da nova ordem internacional onde os EUA demonstra um poder que há muitos não víamos.
JMC Sanchez
Articulista, palestrante, fotografo e empresário.