Um forte relato de quem já viveu dentro de uma favela e conhece a realidade cruel

03/11/2025 às 13:12 Ler na área do assinante

Em 2006 e 2007 eu vivi numa favela comandanda por traficantes na cidade de Novo Hamburgo. Morava eu e mais duas meninas, jovens, trabalhadoras e com pouco recurso. Alugamos um casebre sem banheiro dentro, pois ele ficava disponível para mais famílias naquele recinto. Casa com frestas enormes, sem saneamento, era um modo sobrevivência nível hard. Eu ganhava apenas 490 reais mensais como vendedora de loja, e fazia bicos de vendedora em shows de Rock de roupas da banda que tocavam no dia. Domingo a domingo, poucas horas para ler e estudar para concurso. Comia o que tinha como comprar: 1 ovo com massa estantânea, custava 50 centavos. Pão com ovo e café preto de pior qualidade. Água da torneira era nosso luxo. Banho muitas vezes frio, tinha que esquentar água para usar no balde, pois não sobrava para comprar resistênciade chuveiro. Nem sempre eu tinha absorvente, era pano mesmo durante o período mesntrual.

Carne, feijão, arroz, quando algum colega de trabalho dividia comigo. Era uma glória.

Pesava 49 Kg se muito. Uma calça jeans apenas, um sapato, 2 calcinhas, umas mudas de roupa para o frio e olha lá.

O momento mais trágico foi a morte, na frente de nosso casebre, de um jovem que devia ao tráfico. Morto sem dó. Era o tribunal do crime sob pena de morte. Trauma.

Eu tinha 18 anos. Nunca irei esquecer os eventos tenebrosos de uma comunidade dominada pelo crime. O mau que isso causa na vida de um ser humano.

Sem perspectiva de mudar de casa e comunidade naquele período, achamos uma casinha na mesma ruela, com banheiro dentro (luxo). Foi só alegria. Não tinha frestas, mas os morcegos dominavam o forro e faziam a festa. Era uma labuta.

Eu dormia num colchão e as meninas também. Juntamos forças e vibramos para poder alçar voos maiores e sair dali.

O mais legal disso: nunca usei um pingo de droga. Não bebia nada alcoólico. Eu tinha pânico de um futuro sem cor. As meninas igualmente. Hoje mães de família e bem sucedidas.

Mas a vida cobra desafios quando eu estava quase conseguindo sair da comunidade. Uma menina foi moeda de troca ao tráfico, por sua mãe, viciada e ex empresária, dever tanto por fumar crack. Resgatamos a menina e a escondemos na nossa casinha por poucas semanas. Consegui alfabetizá-la no básico e ceder os conhecimentos que uma menina de 9 anos precisa saber sobre a vida.

Uau, um familiar a resgatou e a tirou dali. A dor que senti do abandono da menina, do ambiente hostil e de assistir a muitas crianças ali, naquele mundo, treinadas para o tráfico, fez com que eu emergisse na comunicação política para poder fazer algo útil.

Em 2007, setembro, a enchente varreu nossos utensílios e perdemos tudo. Fui embora para o interior 4 meses depois, sem emprego, para recomeçar dignamente, pedindo socorro aos meus familiares que não sabiam nada do que eu vinha passando. Eu nunca quis levar problemas para ninguém. Afinal, saí de casa aos 14 anos para vencer.

Aí, quem viveu e vive isso, situações bem piores das que passei, sabe o caos que provoca na vida.

Essa gente indigna de opinar sobre a favela, glamouriza a pobreza, não faz ideia do que é uma vida assim. Não ter chuveiro, não ter luz muitas vezes, não ter paz, não ter saneamento, não ter dignidade. É o crime que manda nesses locais e só quem viveu e vive sabe o quanto o sistema nervoso consegue aguentar.

Carina Belomé

Jornalista e ativista política.

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