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Multiplicai-vos, chatos!

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Adoecemos. Ontem estávamos à margem do precipício. Hoje saltamos, em voo cego, no abismo politicamente correto. O fim é sabido: estatelar-nos-emos em chão duro, seco. Em 10 anos — talvez menos —, os profissionais mais procurados e valorosos do mercado de trabalho brasileiro serão os psiquiatras e psicólogos.

Numa sociedade cujo pensar está acorrentado à hipocrisia seletiva e lastreado por neurastenia e hostilidade gratuita, serão eles a única saída viável para garantir um mínimo de civilidade na rua, na praça, na universidade, no shopping e até dentro das casas, no universo íntimo e privado de cada um. Frequentar internet e redes sociais, então, só com tarja preta duas vezes ao dia.

Foi João Guimarães Rosa, há mais de 60 anos, quem escreveu em Grande Sertão: Veredas, sua obra-prima: “Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente”. Vaticínio de um áugure da Literatura em Língua Portuguesa. Gigante que, vivesse nosso doente tempo, talvez não tivesse suas obras publicadas por atentado ao politicamente correto vigente. Certamente estaria no rol dos censurados, ao lado de Nelson Rodrigues, Monteiro Lobato e Eça de Queiroz.

Não é difícil avistar o cerne dos assassinatos de reputações e da sede por sangue nas redes sociais. Se, por um lado, elas são um precioso canal a dar vez e voz a grupos que antes eram injustamente invisíveis, por outro — e por ignorância —, também servem como caixa de ressonância a mentiras bárbaras e julgamentos sumários. Lados com cada vez menos fronteiras lúcidas, entrelaçando-se maniqueísta e casuisticamente.

Está doente um povo que se mobiliza aos milhões nas redes sociais para julgar e condenar o jornalista William Waack pelo deplorável racismo exposto fora do ar, mas não é capaz de se unir e marchar contra um político que saqueou os cofres públicos e escondia mais de R$ 51 milhões num apartamento emprestado. Adoeceu um povo que faz até camiseta com hastag para chicotear o assédio sexual do ator José Mayer, mas não reage ao assédio moral protagonizado em propaganda política por um ex-presidente já condenado pela Justiça por corrupção, por roubar a Nação, e que arvora-se desavergonhadamente ao retorno ao poder central.

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São apenas dois exemplos da espécie de juízes que nos tornamos. Não espanta, portanto, que as legítimas autoridades brasileiras não vejam impedimento legal em ser padrinhos de casamento dos réus que julgam, ou sintam-se constrangidas com um novo xerife nomeado por velhos bandidos. São elas o reflexo imediato da sociedade que nos tornamos: idiotizados justo no tempo de maior voz; intelectualmente preguiçosos justo na era que mais exige inteligência crítica e capacidade de raciocínio. Minúsculos de alma.

Estamos transformando o Brasil num grande sertão, repleto de idiotas áridos disfarçados em intelectualidade gasosa e venenosa. Tal qual a terra narrada por Guimarães Rosa, escassas chuvas... desta vez de ideias, de pensamentos, de debates sadios, de liberdades. E foi o mestre quem profetizou: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

Multiplicai-vos, chatos do Brasil... e façam uma poupança para pagar psicotrópicos!

Foto de Helder Caldeira

Helder Caldeira

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
*Autor dos livros “Águas Turvas” e “A 1ª Presidenta”, entre outras obras.

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