Havaianas, ideologia e o risco de romper com o imaginário brasileiro
23/12/2025 às 14:16 Ler na área do assinanteA recente polêmica envolvendo a campanha publicitária da Havaianas expôs algo que vai muito além de uma escolha criativa mal recebida pelo público. O episódio revela uma tensão crescente entre marcas consolidadas, decisões corporativas influenciadas por agendas ideológicas e um consumidor brasileiro cada vez menos tolerante a discursos percebidos como imposições culturais ou políticas. No centro da controvérsia está a Alpargatas, dona da Havaianas, e uma estratégia de comunicação que, segundo críticos, desconsiderou símbolos, tradições e até superstições profundamente arraigadas na cultura nacional.
A campanha questionada sugeria que o brasileiro não deveria “começar o ano com o pé direito” — uma referência direta a uma crença popular antiga, presente em diferentes regiões do país. Para muitos consumidores, a mensagem soou como provocação gratuita. Para outros, como um gesto ideológico disfarçado de criatividade publicitária. O resultado foi imediato: rejeição nas redes sociais, boicotes espontâneos e um debate que rapidamente extrapolou o universo do marketing.
Quando a publicidade ignora o repertório cultural
Marcas como a Havaianas não vendem apenas produtos. Vendem símbolos. Durante décadas, o chinelo de borracha foi associado à informalidade brasileira, ao cotidiano popular, ao humor e à identidade nacional. Mexer nesse imaginário exige cautela. Superstições podem parecer irrelevantes para executivos ou departamentos criativos sofisticados, mas fazem parte do cotidiano real de milhões de brasileiros. Cores usadas no réveillon, rituais de virada de ano e pequenos gestos simbólicos não são detalhes folclóricos: são elementos de pertencimento cultural. Ao subestimá-los, a marca corre o risco de parecer desconectada do público que a sustenta. O erro, segundo analistas críticos da campanha, não estaria apenas no conceito criativo, mas na incapacidade de leitura do contexto social e cultural.
O fator liderança e o histórico corporativo
Outro ponto que ganhou destaque no debate foi a figura do CEO da Alpargatas, Liel Miranda. Críticos resgataram episódios anteriores de sua trajetória empresarial, especialmente quando esteve à frente da Mondelez. Na ocasião, campanhas consideradas ideológicas também geraram forte reação negativa do público, resultando em pedidos públicos de desculpas e prejuízos de imagem.
A repetição de estratégias semelhantes levanta uma questão relevante: trata-se de erros pontuais ou de uma visão deliberada sobre o papel das marcas na chamada “guerra cultural”? Para uma parcela do público, há um padrão claro de tentativas de inserir pautas políticas ou comportamentais em produtos de consumo popular — uma estratégia que, em vez de engajar, acaba afastando consumidores.
Ideologia, consumo e o limite da imposição
O caso Havaianas se soma a outros exemplos recentes no mercado global. Marcas como Budweiser e Disney enfrentaram reações semelhantes após associarem seus produtos a agendas identitárias que não dialogaram com seu público tradicional. Em todos esses episódios, o ponto central não foi a diversidade ou a pluralidade em si, mas a percepção de imposição — a sensação de que o consumidor estava sendo educado, corrigido ou direcionado politicamente.
O consumo, por definição, é uma escolha. Quando uma marca parece dizer ao público o que ele deve pensar, sentir ou valorizar, essa relação se rompe. O discurso corporativo que afirma “despertar necessidades” no consumidor pode soar, para muitos, como arrogância. Afinal, ninguém gosta de ser tratado como massa moldável.
Impactos econômicos e o risco para a cadeia produtiva
Além da dimensão cultural e simbólica, há consequências práticas. A Havaianas possui milhares de franquias no Brasil, empregando diretamente um número expressivo de trabalhadores e sustentando uma extensa cadeia produtiva. Uma queda brusca nas vendas afeta lojistas, funcionários, fornecedores e parceiros comerciais.
Especialistas alertam que, se comprovado prejuízo financeiro diretamente associado à campanha, franqueados podem buscar reparação judicial por danos materiais, quebra de contratos ou perdas comerciais. O cenário abre espaço para substituição da marca em pontos de venda, favorecendo concorrentes que optem por uma comunicação mais neutra ou alinhada ao sentimento popular.
Concorrência e reposicionamento de mercado
Enquanto a Havaianas enfrenta desgaste, marcas concorrentes observam uma oportunidade rara. Empresas como Ipanema, Rider e outras podem se beneficiar ao reforçar uma comunicação baseada em símbolos nacionais, simplicidade e identificação direta com o consumidor médio. O uso de figuras populares, como cantores sertanejos ou atletas, reforça essa estratégia de proximidade cultural — algo que, historicamente, sempre funcionou no Brasil.
Curiosamente, campanhas do passado da própria Havaianas mostraram que é possível brincar com símbolos culturais sem gerar rejeição. Comerciais bem-humorados envolvendo futebol, rivalidades esportivas e superstição já foram amplamente aceitos. A diferença está no tom: humor compartilhado é distinto de provocação ideológica.
Mais que um erro de marketing
Reduzir o episódio a um “erro de campanha” é simplificar demais. O caso revela um conflito maior entre elites corporativas globalizadas e consumidores locais que se sentem ignorados. Também evidencia o risco de decisões tomadas em bolhas ideológicas, desconectadas da realidade cultural do público final.
O consumidor brasileiro mudou. Ele não é passivo, não aceita facilmente discursos que percebe como desrespeitosos ou alheios à sua identidade. Redes sociais amplificam reações, boicotes se organizam rapidamente e marcas antes intocáveis passam a ser questionadas.
A crise da Havaianas serve como alerta para o mercado. Em tempos de polarização política e cultural, marcas precisam escolher com cuidado seus posicionamentos. Não se trata de evitar temas sensíveis, mas de compreender profundamente o público com quem se fala. Ignorar tradições, símbolos e valores populares pode custar caro — não apenas em vendas, mas em reputação construída ao longo de décadas.
Se a Alpargatas conseguirá reverter esse desgaste ainda é incerto. O episódio, no entanto, já entrou para a lista de casos emblemáticos em que a publicidade deixou de unir e passou a dividir. Em um país onde cultura e consumo caminham juntos, romper esse elo pode ser um erro difícil de corrigir.
Bosco Foz
Jornalista, Gestor Público, Vereador em Foz do Iguaçu.
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