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O grande irmão contemporâneo

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Dizem que a democracia é um regime cheio de imperfeições, mas ainda não se inventou coisa melhor. Na história da humanidade, desde a época grega, ocorreram as mais diversas variações e formas de democracia. Muitos morreram e sofreram em nome dela, como também muitos se frustraram em seu nome. Porém, não existe uma fórmula acabada de democracia. De fato, no processo histórico de curta ou longa duração, a percepção humana sempre foi buscar a utopia de uma sociedade livre, justa, fraternal e solidária. Enfim, enquanto o homem existir, esta luta continuará.

Aqui no Brasil, a história não foi e não será diferente. Mas a democracia brasileira traz em seu bojo ranços autoritários. No período colonial, por exemplo, a sociedade patriarcal era autoritária e machista, mesmo com as atenuações relatadas no clássico livro “Casa Grande e Senzala” do mestre Gilberto Freyre. 

No Império persistiram as mesmas estruturas socioeconômicas, apesar de muitos monarquistas defenderem o Segundo Império como um exemplo de democracia, como fez o historiador João Camillo de Oliveira Torres, com o seu importante livro “A Democracia Coroada”. 

Na República, os ventos autoritários mostraram-se visíveis desde os primeiros tempos, com os governos de Deodoro e Floriano Peixoto. Na sequência, persistiu o ranço autoritário da sociedade, sendo que o presidente Arthur Bernardes governou sob o tacão da violência do “estado de sítio”, chegando inclusive a instalar um campo de concentração em Clevelândia, às margens do rio Oiapoque. O que pouca gente sabe é que corumbaenses morreram naquele campo de horror. Seguiram-se depois as ditaduras de Getúlio Vargas e a dos militares.

Pois bem. Hoje vivemos uma democracia (?).

O que assusta é que em seu nome se tomam medidas de caráter autoritário e parece que tudo isso é visto com espantosa normalidade. O exemplo mais acabado é o funcionamento no país de mais de 400 mil grampos telefônicos legais (autorizados pela justiça) e ilegais (na verdade não se sabe quanto), com os mais inconfessáveis interesses. Essa paranoia começou em nome da segurança pública e se alastrou como uma praga maldita e a sua liberdade vai para o brejo. Talvez você não saiba, mas neste momento seu telefone pode estar sendo monitorado. Pode ser até que você não seja o alvo do monitoramento, mas inventaram um aparelhinho infernal, chamado “guardião”. Se você tiver o infeliz palpite de ligar para um telefone que está sendo vigiado por autorização legal da polícia, ou de forma clandestina, vai ser grampeado.

Os computadores pessoais e os celulares, e seu uso por uma multidão, com múltiplos recursos  e aplicativos também não deixam passar nenhum detalhe dos acontecimentos, pois qualquer mortal pode registrar qualquer coisa e publicar imediatamente nas redes sociais.

Isso equivale à presença em nossas vidas do “big brother” (grande irmão), previsto no livro futurista “1984” de George Orwell e publicado em 1948. Um dos mais importantes escritores britânicos de sua época, Orwell (seu verdadeiro nome era Eric Arthur Blair) previu com 60 anos de antecedência uma sociedade controlada pela tecnologia (o mundo da utopia negativa), onde o “grande irmão” entrava em todos os lugares e vigiava todas as pessoas através de um partido que tinha chegado ao poder por uma revolução. 

Neste caso, o mecanismo de controle era um telão (“teletelas”), que ficava nos locais de trabalho, praças, bares, etc. e captava e enviava voz e imagens, permitindo o controle e a manipulação dos cidadãos. Este livro, que marcou e assustou muitas gerações de leitores, sempre foi visto como crítica a uma indesejável sociedade autoritária, mas distante de uma realidade concreta.

Agora, o uso dos grampos e de ourtas novidades tecnológicas ao alcance de todos mostram que o “grande irmão”, descrito por Orwell em “1984” já mora ao lado. É mais assustador e perigoso ainda achar que isso é normal, natural ou uma forma de se obter mais segurança. 

E lá se vai a nossa liberdade e democracia rolando escada abaixo...

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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