Quem golpeia a democracia?

06/08/2022 às 11:13 Ler na área do assinante

Povo nas ruas nunca é golpe. Mas – quando oprimido – pode ser revolução.

Por sinal, nada há de mais democrático que a sociedade exercendo diretamente, nas ruas (e nas redes), o seu direito primordial e inalienável, consagrado em todas as modernas constituições republicanas: a soberania popular. Pois, em regimes democráticos, só há um soberano: o povo. 

E este, aos olhos dos verdadeiros democratas, nunca pode ser considerado uma “ameaça” à ordem vigente; no mínimo, um “termômetro” a indicar o grau de insatisfação (ou satisfação) dos cidadãos para com o comportamento de seus representantes. 

Democracia “representativa”, como o nome diz, não é o governo de poucos para si mesmos – isto seria uma oligarquia ou uma plutocracia. A “representação”, sob o modelo democrático,  significa, unicamente – e para todos os efeitos –, aquela da vontade popular, da maioria dos cidadãos, que, não podendo exercer diretamente o poder – já que concentrada na sobrevivência  e na (re)produção da vida material –, delega-o a “representantes” temporários (governantes e  parlamentares), para que cumpram, à medida do possível, em nome de toda a sociedade, os  anseios populares – e não os próprios(!). Para isso é que existem eleições periódicas e diretas,  sufrágio universal e alternância no poder.

No exercício do poder representativo, nos perímetros do regime democrático, qualquer  tentativa de substituição da vontade do povo pela de pequenos grupos, corporações ou particulares é desvio de função. É traição à vontade soberana da maioria. É uso indevido do  Estado para fins privatistas (patrimonialismo). É golpe – e não o povo nas ruas!

O Brasil inscreveu, no parágrafo único do Art. 1º de sua Constituição Federal (1988), de forma  límpida e indubitável, o preceito universal de todas as democracias modernas: “Todo o poder  emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Ou seja: se  (e quando) possível, o povo pode e deve fazê-lo diretamente, sem intermediários (caso dos  plebiscitos e referendos); na impossibilidade (o que é a regra cotidiana), por meio de delegados  legitimados pelo voto. Os movimentos de ruas, assim, nada mais são que uma forma (dentre  outras) de expressão legítima e democrática da vontade coletiva do único soberano legalmente  ungido para deter o poder político em uma democracia: o povo – jamais, por conseguinte, uma  manifestação de “golpe”.

Golpe, numa democracia – isto sim! –, é colocar-se contrário às manifestações populares – pouco importa se “espontâneas” ou “induzidas” – tentando desqualificá-las por mero  oportunismo, arrogância ou cinismo, como se o povo não tivesse vontade própria e carecesse,  ad aeternum, da tutela de “condottieres iluminados”.

Golpe é usar a autoridade delegada e as instituições de Estado para tráfico de influência,  enriquecimento ilícito e perpetuação no poder – a exemplo do “Mensalão”, do “Petrolão”, dos  desvios dos fundos de pensão e do BNDES, os contorcionismos jurídicos para inocentar  corruptos e restituir-lhes os direitos políticos, etc.

Golpe é subordinar pautas e votos no Parlamento ao atendimento de favores, vantagens e  privilégios pessoais ou grupais – como se revelam as tradicionais e insidiosas chantagens  praticadas nos bastidores do Congresso Nacional, transformadas em rotina da Casa.

Golpe é engavetar ou boicotar, por mera tática de interesse pessoal ou corporativo, matérias de  amplo interesse público, adiando sine die a sua apreciação plenária – como no caso da “Lava  Toga” e tantos outros requerimentos ou projetos em tramitação.

Golpe é tentar burlar regras e procedimentos legais e/ou regimentais para permanecer no poder a qualquer custo – como foi a tentativa dos últimos presidentes da Câmara e do Senado, com o  aval (o que é pior!) de parte significativa dos membros da Suprema Corte.

Golpe é alterar compulsoriamente a hermenêutica jurídica e a jurisprudência em favor de  interesses oportunistas de ocasião – como tem feito, sistematicamente, o STF –, em absoluta  afronta ao bom senso e ao sentido de justiça – únicos princípios que deveriam nortear o nobre  exercício da função.

Golpe é amparar, com a aprovação de deslavados instrumentos legais – na contramão dos  padrões democráticos internacionais –, o crime organizado e a corrupção, sob o cínico pretexto  de “defesa dos direitos fundamentais do indivíduo” – como bem traduzem o fim da prisão em segunda instância e a nova (e desvirtuada) Lei Anticrime.

Golpe é traficar monocraticamente habeas corpus a corruptos notórios e contumazes,  transformando o Poder Judiciário em mero “escritório”, em última instância, do banditismo institucionalizado.

Golpe é transformar pareceres e sentenças em mercadorias seletivas, de alto valor monetário.

Golpe é interpretar casuisticamente a Constituição em favor de grupos políticos específicos e de  criminosos rugosos e renomados, atraiçoando o interesse geral da sociedade.

Golpe é violar o sistema acusatório de Justiça, como tem feito, arbitrariamente, o STF,  contrariando os princípios básicos do Direito e usurpando um poder que é reservado, exclusivamente, pela Constituição, ao Ministério Público.

Golpe, enfim, é saquear impunemente o país durante anos a fio, em bilhões e bilhões de dólares,  eximir-se, cinicamente, de toda autocrítica e responsabilidade e, depois – com o aval da própria  “Justiça” (sic!) –, reaparecer no cenário do crime pousando, hipócrita e debochadamente, de  “supremo redentor” da nação.

Não. Definitivamente quem afronta e ameaça as instituições e o estado de direito, numa  democracia de verdade, jamais é o povo nas ruas – único e legítimo depositário do poder –, mas  os políticos, juízes e demais autoridades que, no exercício de suas funções públicas, subvertem  os princípios e as finalidades que regem a ordem republicana e democrática, impedindo o  cumprimento de seus inerentes e inconfundíveis desígnios.

Assim tem sido ao longo de toda a história nacional. As grandes transformações de panoramas  políticos sempre resultaram, desafortunadamente, de golpes de Estado – e não de revoluções.  Dessarte foi com a Independência (1822); com a Proclamação da República (1889); com a  instauração do Estado Novo (1937); com o prolongamento desmesurado do Regime Militar (que  perdurou até 1985). Mesmo a derrubada dos períodos ditatoriais, que marcaram a trajetória  política brasileira no século XX, jamais foi consequência de processos revolucionários, conquanto (e tão somente) da ação das elites em disputa – que sempre souberam se aproveitar  das pressões populares para se revezarem no poder. 

Traduzindo: desde sempre, na política brasileira, nada mais sucedeu que um mero  “transformismo” (mudança aparente) dentro da mesma ordem de coisas, capitaneado por elites  em conflito.

O que sempre ameaçou, portanto, a democracia brasileira – que fique isso muito claro! – nunca  foi o povo nas ruas, os movimentos populares, mas, sim, as elites antirrepublicanas, em suas  tradicionais e impenetráveis trincheiras, acostumadas a disfarçar as suas reais motivações  golpistas e cabulosas com o apoio cumpliciado dos meios de comunicação de massa (sócios do  esquema), usando a disseminação massiva e seletiva de narrativas capiciosas e fraudulentas para acusar os adversários (e a população) daquilo que ela própria, inescrupulosa e  invariavelmente, comete. 

Não, ainda não chegou o dia em que o povo brasileiro, cansado de tanta corrupção e  malandragem, desmando e descaso, protagonize uma verdadeira (e inédita) revolução, para a  surpresa e o espanto dos habituais e incautos usurpadores do poder. Mas poderá chegar,  quando menos se espera, como decorrência direta de tanta humilhação e traição acumuladas. 

Quiçá, então, à custa de muito choro e ranger de dentes, supere-se, finalmente, a cultura do  desrespeito e do desdém, por parte das elites políticas e togadas, para com a vontade popular e o interesse geral. Quiçá! 

Até lá, por certo, ainda prevalecerão as passeatas e manifestações pacíficas de costume, de  têmpera paciente e ordeira, ainda que secundadas (comme d’habitude) pela arrogância e  cretinice dos falsos democratas que, em sua desfaçada e incessante farsa, por cegueira, imprudência ou, mesmo, desdém, temerariamente as desprezam – ignorando o furor contido  das massas.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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